segunda-feira, 15 de junho de 2015

"ZANZADO" NAS MARGENS DO KWANZA


Desta vez, transportado pelo António (nome do Tucson marron que me transporta), desafiei a distância camuflado na cauda duma coluna com batedores de Luanda ao Dondo. Os buracos evoluíram para crateras em quase toda extensão do troço Zenda-Dondo, assistindo-se um tráfego lento e perigoso. Mas na carona da coluna que levou um dos notáveis do governo central a inaugurar um centro de produção de larvas e tilápia em “Massa Ngana” senti pouco o incómodo dos colegas automobilistas que, fugindo dos buracos, volta e meia aparecem na faixa contrária, repartindo os do sentido ascendente um só via da estrada cujos sentidos estão separados por uma linha de betão armado. A impedir que a coluna do chefe encontrasse dificuldades estavam dezenas ou mesmo centenas de polícias, o que não deixava de criar estranheza a todos os que trafegavam entre Luanda e Dondo num dia de Março.

Enquanto os governantes cuidavam, em Massangano, de assuntos ligados à produção em larga escala de choupas para amanhã, no Dondo, a conversa girava em torno daquela coluna que se supunha ser do comandante geral da polícia nacional, dada a prontidão com que os agentes se fizeram à estrada, e em torno do rio que gera vida e felicidade para muitos.

Numa barraca à marginal da “velha cidade de Dondo, local em que Paulo Dias de Novais não mais pôde navegar, fundando ali mesmo uma cidade, Chiquito que era homem da estrada, conhecedor de quase todas as províncias de Angola, começou por admirar o rio Kwanza, engrandecido ao longo da caminhada e que se entregava ao deleite de centenas de convivas.

- Epá, estão a ver o rio, né? Vocês deviam ir ao Citembu, onde nasce. Lá o Kwanza é apenas um fiozinho. É como um bebé que nem sabe ainda correr. É lento e desajeitado. Sem personalidade. – Contou Chiquito, acompanhado atentamente pelos companheiros de ocasião na barraca da dona Pascoalina.

- É verdade. - Respondeu Rafael, nascido em Kalandula. – Fiz a tropa no Bié e conheço a nascente. Às vezes, os rios se parecem a nós homens. Mais robustos e trungungueiros enquanto jovens e mais calmos já a “vovoitar”. Quem vê o Kwanza no seu médio curso bem imagina na meiguice próximo da nascente e dessa mansidão, a caminho da foz. – Disse mostrando traços filosóficos o antigo estudante da missão de Késwa.

E o Kwanza estendia-se tranquilo, sem o rugir dos rápidos energéticos de Kapanda, Lawka ou Kambambi. Entregava-se aos olhos contemplativos de visitantes e apreciadores de kakusu na marginal do Dondo ou ainda às mãos límpidas dos lavadores de roupa nas suas margens.

O Kwanza é chamariz até para a idosa viet-kong que grita “amicó, amicó, sado, sado. Compla balato, amicó”. E foi aqui que encontrei Pierre. Apenas Pierre, porque disse não interessar outro nome ou sobrenome.

- Eu me chamo Pierre. - Disse o lavadeiro que nasceu em Kibokolu com vivência no Congo Brazzaville onde diz ter aprendido a fazer qualquer coisa que dê dinheiro limpo.

E reforça que o seu dinheiro é limpo como as águas do Kwanza a que junta força e sabão para atender aos notáveis da cidade.

- Comecei a lava roupa depois de ver um negócio igual no programa Jornal África, da TPA. Na altura fazia biscates de malavu (maruvo) mas rendia pouco. – Contou Pierre. – Aqui, o dinheiro só depende da força. Temos banheiras (bacias) de cada dois mil, de mil e setecentos e cinquenta cada. Os clientes são mesmo pessoas daqui da cidade ou pessoas que estão de passagem. Estes, enquanto comem e bebem para repousar, entregam as suas roupas e nós cuidamos.- Diz Pierre, orgulhoso do que faz. E nas águas meio turbinadas pela chuva que cai quase todos os dias Pierre gana a companhia de senhoras e adolescentes. Uns cuidando de roupas de casa e outros levando moedas ao mealheiro.

Na barraca da dona Pascoalina, quatro passos da lavandaria colectiva, Chiquito, Rafael e Pascoalina levam conversa desgovernada a porto nenhum. Falam sobre o rio e seus mitos, sobre os lavadeiros, sobre os visitantes ébrios que se afogam no Kwanza, dando comida aos kakusus que alimentam outros homens e sobre a vida nas estradas.

 - Essa é a minha última viagem. Da maneira como estão as estradas, os custos com molas e pneus a rebentar aumentaram e os acidentes também. – Atirou Chiquito.

- E porque não escolhes uma rota que tenha poucos buracos?- Tentou acudir a dona da barraca, enquanto apetrechava a mesa dos convivas com batata choupas, banana pão, feijão, farinha museke e salada.

- Já estive na rota de Mbanz-a-Kongu, os buracos me fizeram desistir. Aqui, na Estrada Luanda-Huambo tive ganhos nos dois últimos anos, mas agora também piorou. Vou encostar a carrinha para não arriscar nem a minha vida nem a vida da viatura e procurar emprego de motorista na cidade.- Justificou-se Chiquito que aguardava por Rafael aflito com a deposição de resíduos fisiológicos. Estava a uns vinte minutos a bater de porta em porta para encontrar uma latrina para se desanuviar ou, na pior das hipóteses, um esconderijo.

Perante a aflição, Chiquito tentou, junto de Pascoalina encontrar um caminho.

- Mamã grande, assim, se a pessoa depois de comer, ou mesmo antes, quiser esvaziar um pouco a barriga vai aonde? – Atirou em provocação.

- Meu mano, - responde Pascoalina, essa é a maka que estamos come ela.

É mesmo uma grande Katuta. Depois de nos darem esse largo para montar as barracas nos prometeram casas de banho públicas, mas até hoje só tem ainda aí atrás (e mostrava ela uma latrinas escondidas atrás da tribuna que estavam fechadas).

- Kota - prosseguiu Chiquito - isso é azar grande. Já viu comer sem lavar as mãos com esse vosso Kwanza que dizem estar sempre furioso com os visitantes? Já viu o quê partilhar o mesmo prato com a mosca que acabou de visitar o escape do Rafael? Têm de fazer algo, mamã, senão as pessoas deixam de parar na marginal. – Disse provocante Chiquito.

- É verdade Chiquito. Se esta é a tua última viagem por causa da estrada esburacada, também te digo que esta é a última vez que venho cá comer porque o que vi naqueles arbustos (apontava para um sítio não muito distante do local que se estavam postas as mesas e os manjares) não é coisa boa.

Pascoalina apenas abanou a cabeça, em jeito de aprovação, mas aí era o se ganha-pão. Não compactuando com a imundície arrumou as imabambas e dirigiu-se à administração municipal para apresentar uma reclamação que no fundo era a de todos os frequentadores da marginal do Dondo.

_ Camarada administrador, se queremos turismo tem de ser com higiene, senão os turistas deixam de vir, as famílias padecem de fome e a cidade fica sem movimento.


Nota: Texto publicado pelo Semanário Angolense a 02 de Maio de 2015.

segunda-feira, 1 de junho de 2015

A ÁRVORE DAS BANDEIRAS


Debaixo dum sol abrasador, 12 horas dum verão equatorial, Mariano e André digladiavam-se com duros palavrões inauditos na aldeia de Kasanji. O terreiro, local para os encontros da aldeia, estava cheio de homens adultos, mulheres que reclamavam “mais pudor” por parte dos contendores e crianças, algumas tapando os ouvidos para que aquelas palavras carregadas de lixo verbal não atingissem seus cérebros, afectando negativamente a ainda compacta educação que haviam recebido.
- A árvore é minha. Eu é que subo.
- Não pode ser. Cheguei primeiro. Eu é que a ocupei primeiro.
André e Mariano eram enviados políticos saídos da pequena cidade, sede do município, para missões de "caça ao voto" na região que abrangia 20 outras aldeias, até então ainda virgens do ponto de vista politico-doutrinário. Nem os da situação nem os da oposição tinham explorado aquele território que vivia a sua paz com a naturalidade e a pureza dos tempos em que não se apelava ao viva nem ao abaixo. Em Kasanji, apenas o soba fazia a sua política da administração comunitária e sempre servindo-se da democracia participativa.


- Meus senhores, ponto de ordem. - Interrompeu ngana Muryangu, o soba, recém-chegado de uma diligência fora da aldeia. - O que é que se passa aqui, nas minhas barbas, sem o meu conhecimento. Será que já me golpearam e o povo me escondeu o sucedido?

- Nada, ngana soba. São esses manos que vieram do município que estão quase a se “porradar”. - Explicou a secretária da aldeia que acompanhara o "faço não faz e meto não mete" entre Mariano e André.

- Ei, meus senhores, por favor. Parem ainda de se "pocalizar" e venham cá. Entrem e vamos saber o quê que se passa. A minha aldeia é de paz e aqui tudo se resolve debaixo da árvore, à sombra, e não aos gritos sob o sol ardente. - Convidou ngana Muryangu.

Mariano e André marcaram, em simultâneo, três passos à frente, disputando a estreita porta da "zemba" do soba.

- Eu é que entro primeiro. - Atirou Mariano que era do Partido.

- Isso não pode ser, senhor Mariano. Eu chego sempre primeiro e o senhor quer tomar a dianteira? - Ripostou André que procurava, a custo, introduzir o seu pesado corpo na "libata" do régulo. Este, por sua vez, endireitava os assentos para os contendores encalhados ainda na portinhola.

- Por favor, podem entrar. - Chamou Kaxinda, a secretária, que tinha já a "wala de muxiri" e dois copos na bandeja.

André fez força e entrou, a contra gosto do seu oponente que tentou ainda aplicar-lhe uma “bassula” mas sem sucesso, pois os aldeões estavam de olhos neles.

- Pois é, manos, bom dia e bom assento. - Saudou o régulo.

- Obrigado paizinho. - Responderam em coro, numa harmonia que contrastava com os minutos derradeiros.

- Manos, bebam ainda um pouco de garapa antes de se explicarem. Aqui faz muito sol e a pessoa com sede até palavra não sai bem da boca. - Kaxinda serviu a bebida, uma espécie de sumo, feito a base de farinha de milho e adocicado com a seiva de uma raiz, o dito "muxiri".

Enquanto os homens aliviavam as gargantas ressequidas, ngana Muryangu manipulava as cinco "pedrinhas da sabedoria", amuletos herdados dos seus ancestrais a quem sempre evocava antes da resolução de qualquer querela na comunidade.

- Pronto, filhos. Bom assento, outra vez. - Voltou a saudar o soba, ao que Mariano e André, agora mais pacificados, quase irmanados, responderam com curta rajada de palmas.

- Filhos, vamos então saber o que se meteu no meio dos irmãos. Kaxinda, escreve no livro o que eles disserem para depois transmitir ao povo. - Ordenou a autoridade tradicional da aldeia.

A secretária, diligente como sempre, dirigiu-se à escrevaninha e começou a acta sem mais questionamentos. Era já “pão de cada dia” para ela, embora tivesse apenas a quarta classe do tempo de Agostinho Neto.

- Nosso pai, peço desculpas pelo atrevimento. Sou do partido e vim aqui para falar ao povo sobre os esforços da nossa formação que quer saber o que falta ao povo e tentar procurar resolver os problemas. Mas quando queria colocar as nossas três bandeiras na árvore, o André disse que não podia ser porque ele chegou primeiro e também tinha três bandeiras da formação dele. - Explicou Mariano.

O soba apenas abanou a cabeça, dirigindo o olhar para Kaxinda que, seguindo a velocidade do discurso de Mariano, alimentava manualmente a acta.

- Aqui, o filho, pode também se explicar. - Ngana Muryangu passou a palavra a André que rangia os dentes de tanta vontade de falar.

- Sim pai. Obrigado pela palavra. Conforme o pai ouviu, aqui o caso é só mesmo desentendimento mas acho que está já a passar, não é isso irmão angolano? Eu cheguei às dez horas. Vim aqui mesmo e não encontrei o pai. “Me” disseram que saiu um “kabocado”. Então, falei com a mana Kaxinda que estava prestes a abordar o povo se concordava ou não que eu deixasse nesta árvore, ao lado da escola, umas bandeiras da nossa formação. O irmão aqui chegou às 11 horas e quando me viu a me preparar para colocar as bandeiras disse que não pode ser porque ele já tinha ocupado a árvore. Foi assim que os nervos se descontrolaram e começamos a "se" desrespeitar. - Explicou-se André representante do Desunido.

O soba voltou a menear a cabeça e, novamente, enviou o olhar à secretária que "actava" os pronunciamentos.

- Ok, filhos. Já ouvimos e registamos. Agora que estamos mais tranquilos, o que vocês fizeram em frente dos jovens e das crianças, acham mesmo que está bem? - Atirou o régulo, procurando uma autocritica dos até então desavindos que, se ficou a saber mais tarde, até eram parentes próximos.

Mariano e André que eram conhecedores dos costumes da região colocaram-se em pé, marcharam em direcção ao soba, ajoelharam-se e se abraçaram de seguida.

Ngana Muryangu reconheceu o arrependimento dos dois e prosseguiu a inquirição.

- Mostrem ainda as bandeiras. Se forem aquelas que juntam o povo podemos coloca-las todas na mesma árvore.

André apressou-se na entrega. Mariano fê-lo também. Ngana Muryangu passou-as à secretária para as conferir.

- São partidárias, papá. - Disse Kaxinda. - Cada lado tem uma do partido, uma da juventude e outra das mamãs. – Concluiu a secretária.

- Meus filhos, Mariano e André, já viram o mastro da escola? Parece que a bandeira que estava lá já não está. Rasgou-se há já muito tempo com o vento e nunca foi substituída. Vocês podem voltar à vila pegar cada três unidades daquela bandeira que une o bairro e aumenta o patriotismo das crianças? Quem chegar primeiro com a bandeira da Republica e a colocar no mastro da escola pode ficar com parte da árvore. - Ditou o soba pedagógico.

Mariano e André arrumaram as suas “imbambas” e regressaram à procedência. Ainda não anunciaram à Kaxinda, a quem deixaram os seus contactos telefónicos, quando voltam a Kasanji com a bandeira da República solicitada pelo soba.


Obs: Publicado pelo Semanário Angolense 11.04.2015