domingo, 20 de dezembro de 2015

A POBREZA QUE O TUGA FINGE NÃO VER


Nos meses de Março, Abril e Maio, Portugal, e concretamente Lisboa, é uma cidade muito iluminada. Não porque noutras estações do ano falte luz ou energia eléctrica como aqui (Angola). Não. É o sol que se prolonga, para além do raiar que é madrugador. E quando o sol não se põe ao Atlântico, o angolano ou africano recém-chegado às terras de Vaz de Camões tem dificuldades em buscar a quentura dos colchões e lençóis que o aguardam no hotel ou noutra albergaria.

No centro da cidade de Lisboa, o El corte Inglês, a Praça de Espanha, a Fundação Gulbenkian e outras paragens que incluem restaurantes, bares e tascas para “frascos” (imperiais e pomadas) e cafés são referências quase que obrigatórias para visitas periódicas e diárias.

Há porém quem pretenda viver um feriado, visitando os enormes centros de compras ou mesmo, vestido à paisana, enfrentar a enchente na Praça do Relógio (uma espécie de Roque Santeiro organizado). Só que não tarda, a repetição mata o espanto e a preferência começa a ser a cidade subterrânea, o metropolitano de Lisboa, com a sua grandiosidade crescente, que nos remete há alguns séculos de atraso se não corrermos a bom passo e com qualidade.

Aqui, no metrô, surge então a importância do mapa de Lisboa, ou seja, dos transportes públicos da cidade. O Metrô, com as suas quatro linhas: a vermelha-Alameda/Oriente; a verde -Cais do Sodré/Telheiras; a azul -Baixa-Chiado/Amadora Este e a linha Amarela que vai do Rato a Odivelas é meio de transporte público mais procurado, quer por nacionais quer pelos turistas, levando-os aos mais recônditos sítios da capital lusa, às vezes, com os préstimos do comboio de superfície, das carreiras, do táxi e até de amigos. É para tal que existem os amigos, quanto mais não seja para pôr a "fofoca" em dia.

- Comué na banda, tá-se? - Pergunta o Pedro, 20 anos na tuga e sem meios ainda para regressar. Finge um sotaque lisboeta mas nota-se no encadeamento das palavras a fraqueza do vocabulário e a mistura entre português lusitano e um calão já arcaico deixado no auge da sua criação em Luanda.

- Yá! vive-se. Há crescimento.  - Responde-lhe o amigo João Manuel, turista de ocasião que frequenta uma formação profissional de duração intermédia.

E o teu regresso? – Ataca João Manuel, procurando encontrar uma resposta convincente sobre a sua estada na antiga metrópole, numa altura que até os tugas se colocam na fila da frente para atacar as terras deixadas em 1975.

- A minha volta? Daqui há nada. É só tempo de reunir uns farrapos e completar a mobília. – Justifica-se, enroladamente, Pedro que, ao que se diz, já dormita debaixo duma ponte quando não é a sobra da estátua dos heróis que o abrigam em tardes de sol abrasador.

São essas as conversas nos cafés e noutras andanças entre os que vão a Portugal em missão turística, estudos ou de trabalho e os que lá ainda estão nas bumbas precárias, nas pedreiras ou nos bares.

Pedro, um jovem nascido no Cazenga e que nas refregas de 1992 entendeu vender à socapa a cubata da mãe e emigrar para a tuga, que na altura “batia” é um dos que, envergonhados por nada terem amealhado durante o tempo de vacas gordas por lá e balázios por cá, enterraram a vida na copofonia para enfrentar o frio. Erguem hoje terras alheias a troco de migalhas, que dizem ser bem maiores do que aquilo que nos vai ao prato aqui no país, algo que até o pior dos cegos já vê e desmente.

Ainda na Tuga, é no metropolitano de Lisboa que a África se casa com a Europa civilizada. Em cada paragem, o modo poético de estar europeu é sempre cortado ou pela brutalidade de um homem do leste europeu que ignora a leitura dum jornal, preferindo a fala, ou pela harmónica de um pedinte qualquer. E os pedintes que aumentam dia após dia, são homens de todas as idades e sexos.

Na linha azul do metropolitano, por exemplo, é presença obrigatória a de um cão kabiri, aparentando apenas dez semanas, viajando em ombro forte dum rapaz também nos seus dez anitos que chama a atenção de quem é atento a essas coisas. O silêncio corta até os murmúrios dos africanos sempre dispostos a debates. O rapaz faz chorar a harmónica com o farfalho de seus dedos. Não tarda, chovem moedas no copo descartável amarrado ao instrumento musical. A cena se transfere para a carruagem seguinte, e a pobreza ruma até à morte.

Os africanos mudam de linha mas a estória continua. A peça seguinte é executada por dois adultos de grande compleição física. Dir-se-iam, no nosso linguajar, “caenches” de primeira hora. Um leva no colo uma guitarra e o outro uma harmónica. Soa um fado e os portugueses são os primeiros a aliena-los com moedas. De repente, irrompe uma voz incómoda entre os africanos.

- Não há por cá subsídio de desemprego?

À pergunta se segue o silêncio e só as moedas falam no copo. A moda antiga de dar pão ao pobre ou uma sopa morreu. Era uma vez. Passou à história. Ao menino que se devia dar uma escola, pois o pepino ainda pode ser torcido, dão-se moedas e todos aderem até os Padres que se fazem transportar na carruagem. A formação profissional é negada aos jovens desempregados a troco de um fado barato e ainda dizem que problemas como estes só estão em África. Todos vêm, mas fingem não estar atentos ao que lhes queima a barba, porque só o Marburg em Angola é preocupação, só a Dengue em Timor ou cólera em São Tomé matam. Ninguém quer ver. E lá se vai o metropolitano com uma estória que já virou história.

Todos os dias em todas as paragens, o mesmo cão no ombro do mesmo rapaz, o mesmo fado na mesma carruagem e o mesmo dinheiro.
NB: Crónica (ainda actual) escrita em Lisboa, a 4 de Maio 2005. Publicada a 18 de Abril de 2015 no Semanário Angolense.

quinta-feira, 10 de dezembro de 2015

REVISITANDO A HISTÓRIA E A TRADIÇÃO ORAL

Nkidyafuka: é o vocábulo bakongo que designa quem tem dívida há muito por pagar ou impagável. Essa condição em que se encontrava o meu primo Segunda João, a quem que ajudei a criar, levou-me a Mbanza Kongo, percurso de mais de 450 Km por terra, em estrada ainda bem cuidada, para o seu pedido de noivado, transformado em "casamento" na tradição bakongo.
- Na conservatória podem ir apenas os dois que se casam e os amigos, como também nunca se nega a separação. Para nós bacongo, esse é o nosso casamento. Envolvemos os familiares no acto e quando nos vêm comunicar separação, nós dizemos sentam ainda aqui, vamos conversar. É esse o casamento seguro, o que envolve as famílias. - Declarou o tio-sogro, no momento dos conselhos e recomendações.

Entre colinas que escoam abundante água pluvial para riachos e canais temporários, cresce o mosaico habitacional, destacando-se o tijolo (cor do adobe queimado e) que confere resistência e longevidade aos imóveis.
Para quem como eu não ia a Mbanza Kongo há dez ou mais anos, a cidade cresceu em tamanho e qualidade de vida dos seus habitantes: há mais casas e edifícios erguidos na vertical, há mais asfalto, largos e novos monumentos e, acima de tudo, mais sorrisos nos rostos das pessoas, longe do que um jornalista gozão tratou, em Abril de 2005, por "cidade de rua e meia".

A receber quem chega de Luanda está um monumento que representa o topónimo do antigo reino: um caçador (nkongo), munido de kanyangulu, outros instrumentos menores de caça, um valente cão (também necessário ao caçador) e acompanhado por uma senhora que leva os víveres e que, com certeza, confecciona a jinginga servida ao jantar.
Mas estou ainda no Ambriz, norte do Bengo, a caminho do Zaire, parado num posto de abastecimento de combustíveis, aproveito prosear:
- Mana, boa tarde!
- Boa tarde mano. Quer "arguma" coisa para consumir ou para levar?
- Para consumir. Um café, por favor. Pode ser com açúcar, mas tem de estar quente e forte.
Enquanto a jovem ligava a máquina aproveito provocá-la:
- Mana, como se chama quem nasceu no Zaire?
A senhora faz passear a mente que navega nos conhecimentos acumulados ao longo do tempo e da instrução e quase naufraga.

- Mano, nasci "mborra" em Luanda. Minha mãe é que é daqui do Ambriz e o meu pai é que é de Mbanza (Kongo).
Mariana desviou a resposta que eu esperava, sendo, porém, fornecida por um seu colega que me a transmitiria em voz meio muda:
-  A resposta é "zairiense", kota. E justificou-se: zairense é do Congo Democrático. Nós aqui "samo" mesmo de Ambriz, ambrizetano (do Nzeto) ou mbanza-konguense que também se chama "zairiense".

João Nevumba, como se apresentaria já na hora de despedida, não se ficaria por aí na sua explicação e acrescentaria:
- Estou a ver que o mano está perguntar porque gosta mesmo de saber e parece que está mesmo a ir "na" capital. Mano, as pessoas de Mbanza não gostam muito "lhes" chamar "zairiense". Quando o mano chegar, se precisar referir, fala só mukongo que abrange todos do norte.

Acatei o conselho, joguei o café, meio frio, garganta abaixo. Engatei a mudança automática de progressão e rumei à cidade cujo símbolo apresenta cinco espadas que simbolizam igualmente número de topónimos por que já foi designada: Mpemba, Nkumba Ungudi, Kongo dya Ngunga, S. Salvador do Congo (depois do baptismo do Rei, tornando-se cristão) e  Mbanza a Kongo.

Nkongo, contam os guias do museu, é caçador na língua local. Terão os enviados de Diogo Cão, aportado em Matadi, perguntado como se chamavam aquelas terras, ao que os nativos vindos da caça entenderam que se lhes tivesse sido questionado "o que eram", tendo respondido "nkongo" (caçadores). O reino que possuía seis províncias geridas por "Manis" (titulo de governadores) tomou a designação de Congo, sendo Mbanza (capital) a Congo, na pronúncia e escrita dos comerciantes de bugingangas e anunciantes de Cristo,  o centro político para aonde os "manis" levavam os impostos recolhidos para custear a máquina administrativa. O detentor do poder supremo é Ntotila, em cujo Palácio repousa(va) uma frondosa árvore de três grandes ramos (são dois na actualidade) e uma fronde de folhas permanentes, sob cuja sombra eram efectuadas as audiências e os julgamentos. Perdeu-se na memória o nome da árvore (tipo). Porém, o facto de ter acolhido vários "kuhu" (boas vindas ou conversas introdutórias que para os ambundu equivale a mahezu) ela ganhou o registo de yala kuhu.
O residência real possuía ainda um espaço muito restrito para a lavagem e  tratamento do cadáver do rei finado (sungilu) para que fosse possível conservá-lo intacto até ao acto fúnebre que era procrastinado até à chegada do Mani que vivesse mais distante, chamados todos pelo som do tantã.

A casa mortuária real (mpindi a tadi) ficava a umas centenas de metros do Palácio, distância aproximada a que nos leva ao campo santo real, colado ao nkulu mbimbi (igreja antiga, a Sé com mais tempo a sul do Sahara).
Mas sobre Mbanza Kongo não é tudo. Sobre o desrespeito à mítica Yala Kuhu, contam-se estórias associadas à queda, nos anos 90 do sec. XX , de um elicóptero que, entre outros, vitimou o bispo da diocese local e também o despiste de um avião da companhia de bandeira, já no início do séc. XXI, que levou à morte o administrador municipal, para além do "sangue que a árvore jorrou, estendendo-se do espaço em que está o pavilhão desportivo até ao cemitério real, quando os brancos construíram a estrada, cortando o terceiro galho".

Mas o guia do museu, formado no Benin, em preservação de espaços históricos, a luz da candidatura da cidade de Mbanza Kongo a património da humanidade, não se fica por aqui e vai mais adiante nos detalhes da sua apresentação. Fala também do "Mbanda Mbanda, do clã Nenzako, de Maquela", uma espécie de Presidente do Tribunal Constitucional, a quem cabia entronizar o rei, e informa que "Mbanda Mbanda e o rei no trono nunca se podiam reencontrar. Se o rei fosse à terra dele, ele se ausentava. Se Mbanda Mbanda viesse à capital, também o rei se ausentava. Ele só se via com o Ntotila uma vez e para o entronizar", concluiu.
Entre História confrontável nos livros já abundantes e estórias de ouvir contar e entreter o visitante/turista, muito há ainda por ouvir e desvendar. O melhor mesmo é percorrer os cerca de 450km que separam Luanda de Mbanza a Kongo para ver ouvir e reter. E quiçá recontar também?!

Obs: texto publicado pelo Semanário Angolense de 11.12.2015

terça-feira, 1 de dezembro de 2015

A TRIPLA GPS: D. PAULINA E SEUS DOIS MARIDOS


Nada do que se passava no bairro e arredores era do desconhecimento daquela dupla família. Os filhos andavam todos nas escolas do povo. Gaspar, coveiro na Sant´Ana, trazia dias sim, semanas sempre, as informações mais frescas de quem foi enterrado “congelado ou a quente”. Nomes de finados, biografias, figurantes e até conversas inéditas sobre poligamias e poliandrias praticadas pelos de cujus, ele sabia de cor.
Paulina era enfermeira do Hospital do Prenda e kitandeira em dias de folga. Doentes abastados, com família que conjuga o verbo ter. Doentes pedintes que se alimentavam de restos se sopas de quem podia e tinha. Doentes quase a conjugar o verbo ir, ela sabia de tudo. Na kitanda, outra  praça do ouvir dizer e contar como se estivesse no filme, Paulina era a maior contista. Falava sem tabu nem deontologia sobre as suas experiências hospitalares e sobre coisas que “até mesmo o diabo era capaz de duvidar”.
- Xê, mana Tonha, se mana Paulina está ta e contar cenas do hospital, é melhor ouvir com uma orelha e esquecer com a outra.
Já viste doente que sai de noite para ir assaltar banco e volta de novo na cadeira de roda? Contou que um dia um senhor, você lhe vê tipo coitado. À noite chegam os comparsas dele e lhe levam na cadeira de rodas até um carro.
- Mas assim lhe levam p´ra quê, Yeta? – Indagou Chica.
- É, Yeta, coisas que mana Paulina conta na praça é só já ouvir. Disse que lhe levavam para ir assaltar os bancos. Quando Judiciária chega e colhe já fotografia dos dedos, é mbora dum doente acamado do hospital. Isso mesmo se acredita?
- Hum! Aceita só já quem quer.
Paulina não só era boa falante como era realista. Dizia-se dona do seu destino e que espera “julgamento só de Deus”. Por isso ela fazia a tripla afectiva com Simão. Velho de Ambrizete que foi corrido pelos filhos sob acusação de feiticismo que nunca se comprovou. A lavra de citrinos que tinha decidiu doar ao sobrinho, filho de sua irmã, obrigando os filhos, que dizia ser apenas de sua mulher, irem trabalhar como assalariados do primo, o seu sobrinho. Acusaram-no “nganga”e lhe “kibetaram” até descarregar nojice nas calças. Coitado do velho Miguel saiu daí e encontrou dona Paulina que tinha acabado de chorar o seu homem, Gaspar Kaquarta que foi considerado morto num ataque dos fantoches quando saia dum funeral no Kitexe.
Ali mesmo. Se conheceram na estação dos Caminhos-de-ferro de Malanje. Velho Simão e Mana Paulina, mal se viram, paixão pegou. Amigaram-se. Na casa que Gaspar deixou havia um anexo de pau-a-pique que Velho Gaspar foi reconstruindo com blocos de cimento e areia da rua. Arranjar ripas para zincar o quarto não foi difícil. O emprego de marceneiro permitiu-lhe contacto com uma agência de fazer urnas funerárias e a serração da vila. Fazia os seus caixões e uns “mochos” que vendia às “kintandeiras”, colegas de Paulina nos dias de folga.
Tudo que fosse sobre compra e encomenda de caixões para pessoas vivas, moribundas ou mortas, o velho Simão sabia e contava também à sua dona e os miúdos, pelos “furutos” da casa aproveitavam também captar umas conversas, nem sempre completas que levavam à rua, aos amigos e vezes tantas aos professores também.
Por sua vez, nas horas em que supunham que os miúdos estivessem já dormitando, “hora do vamos se o galo canta”, os miúdos aproveitavam ligar as suas antenas para ouvir os relatórios diários que Paulina e Simão trocavam, antes do cantar do galo que era num silêncio sepulcral.
Ano e meio depois daquela morte chorada do vizinho Gaspar Kaquarta, homem que facilitava todos os enterros dos vizinhos e parentela, com Paulina já amigada e o kota Simão a dar uma de tio Matoso “lundulou”, o dono de casa reapareceu. Tinha sido raptado pela guerrilha e o seu corpo foi confundido com o de um infeliz companheiro de desgraça que era militar da ODP, também mestiço.
No dia em que o vizinho apareceu, com os olhos dele todos rasgados, o bairro todo se pôs em fuga.
- Vizinho coveiro ressuscitou! – A berraria ecoava por todas as ruas da Vila da Mata.
- É quê? Vizinho fez quê?
- Ressuscitou. O “covero” apareceu! “Lengeno”! – Gritava-se.
E todos fugiram, até Paulina e os três filhos, menos o velho Simão que continuou na sua cadeira de fitas a enxotar as moscas que saboreavam o sumo da sua ferida na perna.
Como protagonista e vilão dum filme de acção. Cara-a-cara, olho no olho. Gaspar a dizer com o coração “quero entrar, deixa-me entrar”. Velho Simão, apesar da idade, a dizer também, apenas no coração, “aqui, seja quem for, morto ou vivo, aqui não entra”.
O “bilo” silencioso foi de uns cinco minutos. Ninguém disse nada nem fez nada. Ficaram só a se estudarem até             que cada um tirou a mais acertada ilação.
- Você é o pai dos meninos, não é? É o Senhor Kaquarta. Então saiba que a notícia que chegou na tua família foi de que o senhor foi abatido. A tua família chorou, fizeram um funeral sem corpo  e, depois do luto nossa mulher me admitiu aqui para cuidar dos meninos. O terceiro está já na barriga. – Explicou Simão.
Gaspar deu-lhe um abraço cheio de energia. Os dois foram abraçados à sombra da figueira que espalhava folhas pelo quintal. Gaspar abriu também seu saco de memórias e foi narrando o que se passou durante o tempo todo e o que pretendia fazer com seu regresso.
- Mano, a vida que nos falta viver é pouco. Casa, você aumentou lá “kabucado”. Os filhos, você educou lá “kabucado” e aumentou mais um que está a vir. Se Paulina concordar, podemos viver aqui os três. Ela com os filhos fica na casa grande. O anexo de dois quartos, dividimos, um é teu outro é meu. O resto é conversa de homens crescidos.
O cavalheiros selaram o acordo e quando os ânimos se amainaram, Paulina que fora buscar refúgio em casa de uma colega do hospital regressou com os monas à casa em clima de paz total.
A tripla viveu mais décadas. Paulina ainda pôde dar mais quatro filhos aos maridos que foram se revezando na procriação. Os de Gaspar Kaquarta são clarinhos e com olhos rasgados. Os de Simão Meso ma Nkala são pretinhos como carvão e duma altura que desafia a trepadeira. Juntos os filhos eram seis. Com os pais, a equipa era de nove e tratada carinhosamente por “família GPS”, iniciais de Gaspar, Paulina e Simão, mas também por saberem de tudo o que se passava na Vila da Mata. Os filhos, todos varões, compravam e vendiam informações nas escolas em que estudavam e contavam aos pais. Paulina via e ouvia na Clínica do Prenda e na Praça “Ajuda Marido” e levava para casa, partilhando com os maridos e os filhos. Gaspar que voltara ao seu antigo emprego no campo santo de Sant´Ana, atendia e assistia aos mais diversos funerais e reproduzia as imagens vocais aos de casa.
Simão que fabricava e atendia os compradores de urnas também tinha as informações frescas sobre bairros e ruas onde havia ou haveria “komba” e canjica. Viveram do seu jeito, enfrentando a curiosidade e “mexerequice” duns vizinhos mais inconformados, até que a cova os chamou, um a um.

Obs: texto publicado pelo Semanário Angolense.

sexta-feira, 20 de novembro de 2015

UM CASAMENTO INOVADOR NA KAMUNDA

Conheceram-se no tempo da guerra fria, na República da Kamunda, quando Kapesi se dirigia ao serviço e Boana para a escola. Ao primeiro olhar, parecia visgo, os vulcões até então adormecidos derreteram montanhas, soltaram lavas e perfumes, aproximaram-se e como pessoas que se faziam ideia beijaram-se perdidamente.

- Não precisas de dizer-me agora para aonde vais. Levo-te a qualquer sítio, pois minh'alma diz que és tu o meu destino. - Atirou Kapesi, possuído de romantismo.

As palavras caiam-lhe como chuva de Abril e ela com o ouvido apurado, um planeta de receptividade e atractividade. E foram, caminho fora, falando cada um de si e do tilintar dos seus corações.

- Jovem, preciso de saber se cruzaste a minha vida para um propósito ou apenas para teres mais uma vítima? - Questionou Boana, certa vez, já amarrada às algemas românticas.

Como já disse, decorria a guerra fria daquele tempo que não era um conflito declarado entre as duas principais tribos da República da Kamunda, os vakwombwelo e os vakwonano, que até viviam em paz quase perpétua, interrompida apenas, de forma esparsa, em momentos de cruzamento matrimonial entre os vakwanano, povos do norte da Republica da Kamunda e os vakwombwelo, mais ao centro da Kamunda.

Em questões casamenteiras, os primeiros preferiam o cumprimento de suas tradições em detrimento dos procedimentos moderno-ocidentais ou, na melhor das hipóteses, combinavam a tradição bantu e as inovações alheias trazidas casa adentro pela luz da televisão. Os vakwambwelo habitavam um território plano e alto, irrigado pela natureza, onde abundava gado, cereais e batata do reino de sua Majestade D. Afonso Henriques. Eram também muito apegados à sua cultura e tradições, algo distinta no rigor da aplicação, dos seus vizinhos vakwonano. Os vakwombwelo eram povos muito viajados pelo antigo Reino da Kamunda, queridos por todos os empregadores, devido à sua entrega, elevado grau de comprometimento e alguma mansidão derivado do apego à sacra-palavra. Eram também muito escolarizados pelas missões evangélicas, fazendo-os intermédios entre o conservadorismo e o assimilacionismo a que a sua estrutura organizacional estava exposta. O conservadorismo de ambas tribos que faziam história na República fez com que o namoro de Kapesi e Boana fosse visto com algumas reticências de ambos os lados.

- Mas esse moço que até o irmão kasule já lhe coou com dois filhos, achas mesmo que será bom genro? - Perguntou certa vez o avô Menso Mankala, para acrescentar: Boana, continuadora da minha tribo, alguma vez já ouviste o acusarem de paternidade em algum lugar? Alguma vez já ouviste um zum-zum sobre amigamento dele ou coisa parecida? Desconfia, neta. Homem com estudo, casa própria e boa família, como me contas, não sobra como o jovem de que me falas. - Desconfiou prevencionista Menso Mankala a quem estava confiada a educação de Boana.

- Pai, menos dia menos noite, vou partir. A minha doença é irreversível. Cuida da sua neta até "lhe" entregar "no" marido, assim como cuidará das minhas irmãs. - As palavras de Franque ecoam ainda frescas e de forma insistente nos ouvidos de Menso Mankala, sempre que o assunto é namoro e constituição de lar por parte da neta.

- O que meu filho me pediu tem de se cumprir, custe o que custar. - Dizia para si mesmo, custando-lhe já o epiteto de "O Dificultador".

Do outro lado, as desconfianças e incertezas também faziam morada. Os vakwombwelo encaravam a questão "trabalho e sorriso" por parte de uma nora como primordiais.

- Mulher tem de rir. Tem de conversar. Nora que te mostra dentes é mais do que uma tristonha que te ofereça um banquete. - Costumava desabafar Kasova, a tia mais velha de Kapesi. E, era exactamente, esse sorriso escondido de Boana, embora não ausente, que fazia os da tribo vakwombwelo se posicionarem no NIM no dia em que o jovem reuniu a família para anunciar:

- Pais, mães, manos e manas, já passei a linha dos trinta. Já tive algumas experiências e tentativas de vos apresentar uma nora e cunhada. Acho que com a formação que consegui, casa própria no Kipedro e emprego que já  tenho, é chegada a hora de atar o nó.

Ao inaudito discurso de Kapesi seguiram-se assobios, mais dos sobrinhos e cunhados do que da velha guarda que esperava ver para comemorar.

Os "acorrentados e cercados pelas lavas do vulcão amoroso" tinham combinado abrir o jogo às famílias no mesmo dia.

Boana fez o mesmo com os avós. Menso Mankala não conteve a indignação e teve mesmo um pequeno deslize que só não desembocou em incidente diplomático-familiar porque o amor que juntava Kapesi e Boana não era amarrado com corda. Era mesmo com laço de aço.

Kasova, a tia de Kapesi, e os seus também se interrogaram vezes tantas sobre aquela escolha, exactamente na tribo que se dizia "mandavam a noiva calçar salto alto e juntavam quatro filas de grades até ao tecto da casa".

- É só mesmo já nessa tribo que pedem gerador e terreno com pedreiro chinês que encontraste mulher para casar? Por que não vais ainda lá na embala do avô Kacyopololo ver se sobrou lá uma kafeko da nossa tribo ou de tribo com costumes aparentados? - Questionou Kasova a matriarca da família Kapesi.

No dia A, ou seja, no dia da apresentação, desfilaram adágios de parte a parte.

- A nossa filha está preparada para ser boa esposa e tem de sair daqui só quando eu quiser e com pedido bantu, casamento na igreja e conservatória. - Atirou um dos tios de Boana.

- O Kapessi é um homem preparado e sabemos que cumprirá as suas obrigações para honrar a sua cultura, seus sogros e sua família. - Ripostou JoSa, cunhado mais velho que na ocasião representava o sogro.

O bairro Kipedro, onde viviam Boana e Kapesi, era uma espécie de bairro franco. Lá estavam uns poucos conservadores que se tinham rendido à vida na verticalidade e uns tantos jovens que tinham abdicado da vida quintaleira das aldeias tradicionais da Kamunda. Naquele dia da confirmação do namoro de Boana e Kapesi, Kipedro estava agitada, só faltou o quintal para juntar as famílias vakwonano e vakwombwelo que desfilavam, através de representantes legais dos dois lados, bíblias de adágios e citações.

- Vamos fazer o pedido com os requintes que quiserem mas o casamento só quando o sol mostrar os primeiros raios. - Atirou um dos primos de Kapesi que ignorava o tratamento diplomático em conversas matriciais.

- Raiar do sol? Se vosso filho tentar vai dar multa que vocês não imaginam. - Defendeu-se Menso Mancala.

Com sabedoria, a diplomacia se sobrepôs aos argumentos apenas orgulhosos e despidos de razão. A tarde terminou em festa que adivinhava outra maior no dia P, ou seja, dia do pedido.

Com uma lista recheada aos olhos dos vakwambwelo mas simplificada no dizer dos vakwanano, as partes marcaram a data para o encontro do pedido de noivado que juntaria outros rostos e outro desfilar de rosários.

- Confiamos nas vossas palavras e esperamos que a nossa tradição seja cumprida geometricamente. - Recomendou Menso Mancala à família de Kapesi, ao que JoSa respondeu apenas com um aceno de cabeça, carregando a lista que lhe pesava como pedra.

Chegados à casa, os vakwombwelo, entre a aceitação e a reclamação, começaram por esboçar o plano de resposta.

- Vamos cumprir, mas também queremos ver o sol a raiar antes de nos metermos à estrada. - Aconselhou Phande, outro dos cunhados de Kapesi, ao mesmo tempo que distribuía incumbências para aliviar o peso pecuniário que recaía sobre seu cunhado de eleição. "Eu responsabilizo-me por isso e o fulano por aquilo", continuou Phande, perante a aceitação da família centrista.

O tempo foi juiz e advogado. A lista de incumbências para o pedido tradicional estava fechada. Os fatos, as grades, os vinhos, bijuterias e outros adereços desconhecidos dos infantes desse tempo aguardavam apenas pelo dia P que coincidiria com o casamento civil. À data, o sol já raiava, mas escondido ainda. Era apenas um laranja solar no fundo do ventre. O debate, à distância, via recados levados e trazidos pelos noivos, passou a ser “casar-se-ia antes no civil e depois no tradicional” ou o inverso?

Pela primeira vez, os vakwombwelo ganharam o desafio que os levaria a esquivar possíveis multas pelo alvitre de "ter entrado pela janela".

- Quando chagarmos ao pedido, ela já será tua esposa e nenhum outro pedido de multa terá força ao pé da lei ordinária. Será essa a nossa posição e é consabido que, podíamos até ir de mãos a abanar, sempre nos receberiam e te consagrariam como genro. - O discurso de Phande teve a concordância de JoSa e demais familiares de Kapesi que se manteve obediente às instruções e pouco interventivo.

No dia P, Kapesi que vivia em Kipedro, nova cidade da capital da Kamunda, pegou na sua teó (trotinete rudimentar) e foi ao encontro dos padrinhos que se encontravam na conservatória do registo civil, onde aguardaria pela sua dama. Recebeu aplausos pela inovação e, por fim, Boana como sua prometida Eva. Fizeram juras e trocaram o primeiro beijo público e oficial.

- Juro ter-te na saúde, na doença e na dibinza por todos os dias da minha vida. - Prometeram.

Seguiu-se o preceito tradicional vakwonanwense já sem o peso simbólico doutros eventos. Aqui o ocidente se tinha antecipado, embora tudo quanto tivessem solicitado em carta estivesse literalmente satisfeito. Ao pedido tradicional, Kapesi foi ao lado da mulher, seguindo-se, num mar de alegria contagiante, a cerimónia religiosa de onde Kapesi sairia ao volante do Ferrari decorado ao engodo de Boana.

E cantava-se "kyese vo kakyese ko (alegria ou não)?

- Kyese! - Respondia-se com euforia. E fez-se nova festa!

As mesas estavam caprichosamente marcadas com nomes de aldeias e embalas vakwanano e Vakwombwelo para a alegria dos mais conservadores e petizes que aproveitaram saciar suas sedes com bebidas diversas e geografia de origem.

Fronteira, Kimbele, Damba, Negaji, Zenze, Sasa, Sanza, Kibokolu, Makela, entre outros topónimos nomeavam as mesas que acolheram a familia de Boana. Do outro lado, idosos e infantes viajaram no tempo e na geografia para relerem Kambweyo, Yeyele, Njimba Silili, Ndulu, Katrayo, Kantifla, Cingwali e outros.
E voltou a cantar-se, lado a lado, ensanju e kyese!
...

NSUSU ZAONSO MUBOTE

Na semana que se seguiu ao matrimonio os tios da nubente foram visita-la, a pedido do marido que tinha beneficiado os seus com um repasto-teste executado por Boana ainda com o casamento fresco. Tinham passado apenas 48 horas da cerimonia religiosa e copo d'água. A tradição dos vakwombwelo dita que a casada tem de fazer a sua primeira refeição para os sogros, sob supervisão atenta de uma ou duas tias do marido. Assim foi e no final a nota atribuída pelas tias-júri foi positiva ao que em vez de ser multada acabou prendada.

Kapesi fez o mesmo. Não foi à cozinha mas mandou a mulher à loja e ao mercados dos Zimbos comprar tudo quanto fosse típico e do agrado costumeiro dos sogra. Ele mesmo fez questão de apetrechar a garrafeira com as mais elogiadas adegas e destilados escoceses, não se esquecendo do malavu encomendado a um vini-extractor do Sasa. Em fogo brando, o grelhador abraçava caçadas que apimentavam conversas intercaladas entre o bom Português, apendido na escola e destilado apenas em convívios muito formais, o calão e a língua dominante entre os vakwonano de regiões rurais.
- Esse moço, estávamos só a "lhe" desconfiar pelo casamento tardio, mas parece que é boa pessoa. - Atirou Kindala, tio de Boana que representava Menso Mankala.

Choveram garfadas e estalaram copos. Jorrou uva até noite adentro, quando, a olhar para o volume abdominal de Boana, o tio confidenciou à sobrinha:
- O sobrinho é mesmo bom?
Boana viajou ao passado e lembrou-se de uma expressão ukongo que traduzia e simplificava seus sentimentos e sua análise sobre o marido que escolheu.

- Nsusu zaonso mubote (toda a galinha é boa)! - Respondeu, ganhando do tio a tradução semântica da expressão ora anunciada.
- É verdade, sobrinha. Galinha pode ser careca, sem penas, você "lhe" põe na mwamba, fica sempre bonita na boca da pessoa. Assim também  são as pessoas. Só que se beneficia ou se prejudica com essa pessoa "lhe" faz o justo juízo. Tem mbora razão sobrinha, me desculpa só. Meu neto já está a caminho, almoço com bebidas já nos deu, falta mais o quê? Não liga gente na cidade com mentalidade da selva. - Concluiu o tio já meio canecado.
- Boana deu-lhe o beijo do costume, sinal de que o tio estava já na penúltima ronda da garrafinha alcoólica, ao que reconheceu e acedeu, apelando aos convivas para o discurso de agradecimento e recomendações aos nubentes.
- Já vimos o sol raiar no crepúsculo de Boana. É sinal de que as terras são férteis e dentro em breve teremos herdeiros. Para nós, casamento é isso mesmo. Não se esqueçam de nomear os parentes. Se o fizerem lado a lado fica maia melhor. Na vida a dois não há só sorrisos. Há também tristezas. Há dias que alguém dorme cedo e finge ver bonecos com as crianças só para não se dar encontro com o outro, mas tudo termina no quarto, no leito.
Kindala discursava pedagogicamente e não procurava palavras. Parecia uma lição decorada há anos. E prosseguiu, virando-se ao sobrinho-genro:
- Sobrinho Kapesi, a mulher sempre comeu do não. Fica atento. Às vezes é a mão que lhe dói mas mostra a perna. Saiba ler na escuridão e nunca esqueças a cor da minha porta. Quero muitos netos e um chará. Isso passará por muito tempo de coabitação e equilíbrio. Cada um, à partir de hoje, começam já a conhecer o outro e buscar o meio termo. Tempo de namoro é de mentira. Até diabo vira anjo.
Kindala fez pausa no discurso que já levava tempo apesar de actual, cativante e seguido com muita atenção. Boana e Kapesi seguiam aprovando com a balançar das cabeças.
- Dizia, já para concluir, devem se conhecer de verdade. Vão entrar agora no teate de verdade sobre o marido ou a mulher que cada um escolheu. Também passamos por esses bocados e resistimos. Só uma chamada de atenção à sobrinha Boana: marido não se bate na cara. Bate-se na cama.
Dito isso, e sem deixar margem para comentários à sua expressão final, Kindala marcou o primeiro passo em direcção ao corredor. A garrafa de vinho de 14 anos para combater a pelengwenha do dia seguinte, encontrar-lhe-ia no carro.
Cá em cima, ainda no vigésimo sexto andar de un dos edifícios mais altos da nova cidade de Kipedro, os primos e cunhados fechavam conversas com o habitual e já  quase tradicional "copo da porta".
- A casa está sempre aberta. Venham ver-me e chamem-me para as vossas picadas. Na minha terra é assim: quem casa transita para o convívio e cuidados da outra família. A boana já está entregue, não é isso mor? - Concluiu Kapesi,  abraçando os cunhados Nzuzi, Nasimba e a esposa Boana que não podia estar mais contente do que estava.
Os convivas, de forma espontânea, mas coordenada entornaram goela adentro o "líquido da porta" e comemoraram:
- É isso mesmo nosso 'nhado. Amanhã vamos te arrastar à praça do Sasa para tomar malavu com carne de paca.
E desceram também carregando a encomenda do tio Kindala que se deliciava no carro com a mais nova batida de Socorro, filho querido ukwanano.

Nota> texto publicado no Semanário Angolense de 05.09.2015

terça-feira, 10 de novembro de 2015

AI WÉ?! ME TRAMANKARAM MÔS DODÓS…


Embora não se saiba quando, precisamente, aconteceu essa estória do tramankanso dos dodós, o “fala que fala” apimentado à moda angolense já leva tempo. Ano e meio, mais ou menos.
A cena deu-se entre dois homens e duas senhoras que desenvolveram uma amizade quase parental. Os homens tratam-se por pai e filho, mesmo vivendo, o mais velho, kota Agê, na Tuga e o mais novo, ndenge Dimuka, originário e residente nas terras de Ngola, junto ao maior ribeiro que empresta o nome ao papel moeda. As senhoras, uma, a Kaxinda, diz-se filha de Dimuka, embora se tenham conhecido virtualmente e nunca se tenham avistado "caralmente" como diz o pretenso mas assumido pai. A outra, Dina, também conhecida como “tia dos dodós”, é tuguesa que faz vai e vem, levando umas imbambas trocadas entre o também tuguês Agê, o filho Dimuka e a neta Kaxinda.
Certo dia, Dimuka precisou de livros e pediu-os ao pai que os custeou e os enviou por correio da Tuga às terras de Ngola. Embora sobrevivendo da reforma, Agê, na sua mania da geração dos valores e desprimor às moedas, acabaria por relutar em passar a factura ao filho.
- Olha filho, já tens os dois volumes no correio. Pena é que o custo da transportação é tão alto quanto o da aquisição, mas vais gostar. _ Agê  recomendou a atenção de Dimuka ao post box nos dias subsequentes.
- E quanto te devo, ó pai? É preciso que as contas batam certo para que me possas voltar a ajudar, apelou o filho mesmo sabendo que só muito dificilmente receberia a factura com todos os cêntimos.
- Ó filho, não te preocupes com o dinheiro. Já tive algum e fugiu todo. Os meus amigos e os filhos, biológicos e afectivos, é que me dão a graça de viver, mesmo sem as coroas doutro tempo. _ Escapou Agê.
Dimuka, sabendo do custo dos dois livros, multiplicou-o por dois e cuidou de arranjar os dodós equivalentes na moeda tuguesa. E quase conseguia fazer a operação de envio digital se não fosse o aperto que os banqueiros afinaram às remessas para fora. A crise do ouro negro tinha transformado os dodós em moeda rara quer nas terras de Ngola quer nas de Camões e arredores. Dimuka teve de procurar por Dina dos dodós, que estava de malas aviadas para a antiga metrópole, a fim de levar as apetecíveis verdinhas embrulhadas num lencito de seda perfumado a preceito e as entregar ao seu benquisto pai.
- Coisa que vai à estranja tem de chegar bem cheirosinha. _ Disse para si mesmo Dimuka, antes de entregar a encomenda.
- Podes confiar, Sô Tor., Tão logo baixe o pé no Figo Maduro (nome aeroporto) eu ligo ao teu papai a informar e a combinar o encontro. _ Disse a mulher banhada de satisfação.
Trocaram cortesia e sorrisos. Tudo caminhava a preceito. No dia seguinte, Dimuka recebeu uma chamada a confirmar que Dina tinha chegado bem e falado já com Agê. Dimuka esfregou as mãos de contente. Mais ainda quando recebeu os agradecimentos do pai, embora tivesse terminado com a sua célebre frase, já canção, "o dinheiro faz pouco na minha vida". Tanto de um lado quanto do outro reinou a sensação de confiança.
- O infante é de palavra. Meninos assim é que dava para adotar na juventude. _ Terá desabafado Agê ao desenrolar o lencito de seda carregando umas folhinhas que valem ouro.
- Esse kota é mesmo um tuga mwangolizado. Quem me dera que tivesse ficado connosco quando se deram as vundas do tunda mindele? _ Desabafou Dimuka que me contou presencialmente a sua versao dos factos.
Mas não era tudo. Kaxinda, candidata a escritora, tinha contas por pagar numa editora livreira da estranja e debatia-se com a carência de folhas verdes decoradas com bandeira do tio Sam. Já o tinha comunicado ao pai adoptivo Dimuka e ao vovô Agê que prometeram "ajudar na medida do possível", mas num tempo que não se encurtava.
Numa altura em que Kaxinda desesperava, Agê deu ar de sua Graça. Ligou à Dina pedindo-lhe se podia levar os dodós de volta às terras de Ngola e, desta vez, os entregar à Kaxinda. Conseguido o agrément, telefonou à neta:
- Ove lá, minha neta, teu pai pagou-me os livros mas vou te enviar o dinheiro para ajudar no teu livro. São três folhinhas que valem pouco mas que ja dão um pequeno impulso. Guarda sigilo e não lhe digas nada, está bem? Boa sorte. Uma dona, a Dina, mulher linda séria e inteligente, vai te contactar quando chegar por aí. _ Segredou Agê, ao que mantiveram, neta e avô, a conversa longe de Dimuka que continuou a sua vida e a  sua interação ora com o pai na estranja ora com a filha incógnita que reside a 1200km de distância.
Terminada a transumância invernal, Dina regressou ao antigo ultramar onde decidiu juntar patacas, sendo surpreendida, ao que se conta, com a subida vertiginosa do custo de vida e cada vez mais difícil acesso às verdinhas.
- Estou nas margens do Kwanza onde é esse rio quem todas as contas paga, vou levar à neta do Agê alguns litros dessa água milagrosa e fico com as folhas verdes, verdinhas como o café ribeirinho do Kwanza. _ Filosofou Dina dos dodós.
Na manhã do dia seguinte, Kaxinda, que já sonhara com os dodós vindos da Tuga, receberia os litros do Kwanza.
- Ei-los, filha. Foi teu avô q'os mandou p’ros netos, os teus filhos. _ Atirou Dina esboçando um sorriso matreiro.
- Kwaaanzas, mô Deuju?! E os môs dodós que o vovô me segredou? Ai wé, Ngana Nzambi, me tramankaram mbora môs dodós do livro na Tuga...
E foi esse o grito que se ouviu de Kabinda ao Kunene e da Matamba a Galiza. Já correu muito tempo mas o “conta que conta” vai avivando a cena e com novos detalhes e mais ajindungados.
NB: publicado pelo Semanário Angolense a 09.05.2015.

domingo, 1 de novembro de 2015

O FEIJÃO “ENXOTA CLIENTE”



Já tinha ouvido falar e visto nos seus tempos de criança o “peixe catana” ou “cikolamwenho”. Tão duro, tão duro que precisava de uma afiadíssima catana ou machado para o desfazer em bocados, nem sempre ao gosto do retalhista/cozinheiro. Era o peixe que, em Kalulu, nos anos oitenta do século XX, era vendido nas empresas cafeícolas Libolo I, II e Libolo III. Tempos depois, com a fome que se seguiu aos dias do conflito pós-eleitoral de 1992, surgiram dois tipos de feijão. Um era o “espera cunhado” e outro o ”afugenta sogra”. O primeiro era de fácil cozedura, não demorando mais do que quarenta e cinco minutos. O segundo era de uma dureza nunca vista e que, naqueles tempos de fome e penúria, muito servia a algumas noras mal-educadas para afugentar as sogras.

- Mamã almoço hoje é feijão. Só que está já há duas horas e meia e não está a cozer. O gás, essa é segunda botija, e nada! - Diziam.

Quando pensava ter já ouvido e assistido a muita coisa, Kitomangombe foi surpreendido com o feijão “afugenta cliente”. Isso mesmo, “Afugenta cliente”. Não é beff.

Com antecipação de 24 horas e reconfirmação de 4 horas, encomendou o almoço. Comida em instância turística para o “magnata”, a digníssima e dois herdeiros do “trono sobático”. Gentil, como sempre, a gestora, parecia encaminhar o assunto em boa praia. Trocaram mensagens com as devidas cordialidades e formalidades. Drº Kitomangombe por lá, seguido de um agradecimento, e Drª Beltrana, por cá, seguido igualmente de agradecimento da praxe.

- Papá, onde é hoje o almoço? - Perguntou Renato já acossado pela fome, ainda a meio do culto Metodista.

- Filho, ainda é cedo. Respondeu-lhe com um vinco no rosto, dada a sua forma desconcertada de estar perante um local de adoração.

-Mamã, o papá não está a falar onde vamos comer. – Resmungou o rapaz, em busca de auxílio.

- Eu já disse que vamos almoçar num lugar turístico. Por agora devem prestar atenção ao culto e depois partimos para o almoço. – Emendou Kitomangombe, olhando para o filho no colo da mãe.

- Papá! Vamos comer “papuço”? - Voltou a questionar, já mais alegre pela resposta recebida do progenitor.

- Sim. Vamos comer kakusu, se te portares bem.

O sol corria para o meio centro. As chapas que cobriam o local de cultos pareciam gritar. Estavam sendo esticadas pela temperatura que atingia o seu ponto mais alto. No estômago, as lombrigas brigavam descontentes e tudo fazia adivinhar outras perguntas sobre o local e a hora do almoço.

- Mor, já confirmaste o almoço? - Desta vez foi a esposa preocupada com a fome dos filhos (as mulheres têm essa “mania” de pressentir a fome dos filhos) ou mesmo reclamando o seu quinhão.

- Sim, já enviei mensagem a confirmar a nossa ida ao local e obtive a resposta, garantindo que tudo estaria a ser preparado e pronto ao meio dia e trinta minutos.

Não tardou, o coro principal da igreja entoou o hino derradeiro: “teu culto finda aqui. Despede-nos Senhor. Dirija-nos até ao fim. Por teu excelso amor”! – Entoaram sorridentes os jovens de becas esverdeadas.

Fez-se fila para saudar o pastor, o liturgista e os coristas perfilados à saída do templo físico. Renato, o filho, corria de lado a outro. Se tinha apossado da igreja, depois de duas horas e meia de “prisão” no seu imaginário traquina. Os apressados dirigiram-se aos veículos e motociclos e foram “rezar noutras freguesias”. Kitomangombe, a mulher e os dois filhos seguiram-lhes o exemplo e procuraram por um ATM que encontraram sem muita demora. – - Tem dinheiro! – Disse festivo aos que se encontravam na viatura encostada à beira da estrada.

Fizeram-se a caminho do Centro Turístico Kulikwasa que distava cerca de treze quilómetros da urbe.

- Papá olha praia! – Gritaram as crianças.

- Mamã, não trouxeste o meu fato-de-banho.- Reclamou a menina que obteve a pronta resposta da progenitora.

- Teu papá não nos avisou que viríamos aqui. Fica para a próxima filha. Também o clima está a ameaçar chuva. – Rematou para consolar a filha que trançava a boneca.

- Não é praia, filhos. É lagoa natural. Aí não se nada. É perigoso.- Emendou Kitomangombe que, até aí, se limitara a ouvir a conversa entre a mãe e os filhos.

- Papá, e só vamos comer mais nada?- Insistiu a menina.

- Sim, Mara. Vamos comer e ir descansar em casa. Amanhã é dia de trabalho.  

Estacionada a viatura, a família Kitomangombe passou pela cozinha que estava entregue às moscas.

- Nem uma brasa acesa. - Observou o patriarca que começou a desconfiar das palavras amorosas da gestora que lhe garantira, de pés quase juntos, “encontrarás tudo pronto”.

-Será que já está mesmo pronto e só a espera que chegássemos?- Indagou desat vez em voz alta á mulher, por instantes, se tinha distraído com a exuberância da lagoa.

- Boa tarde, jovens, podem mostrar-me o “gerente”?- Indagou Kitomangombe.

- Os três moços, que jogavam à dama, entreolharam-se e apontaram-lhe o caminho da sala onde estaria o responsável.

- Boa tarde, jovem. É o gerente?

- Sim. Sou eu mesmo. – Respondeu meio tímido o jovem que aparentava 22 anos e mal trajado para um serviço de atendimento a clientes.

- A Drª Beltrana falou-lhe sobre quatro pessoas que viriam cá almoçar? O prato é kakusu – Lembrou-lhe.

- Sim, boa tarde, mano. Ela falou. Podem dirigir-se à mesa. Querem ficar na sala ou junto à lagoa? Também há sombra e cadeiras.- Aconselhou o atendedor.

Kitomangombe, aconselhado pela filha, escolheu o espaço aberto, com uma visão mais ampla para a nascente natural barrada pela acção humana e que resulta numa majestosa lagoa com margem betonada num dos lados. Os filhos andavam de um lado ao outro como felino que demarca o seu espaço vital.

- Papá! Quero andar de canoa. – Interrompeu Renato.

Antes mesmo que se preparasse para ensaiar a resposta negativa, Renato voltou a disparar: - papá! Quero nadar nessa piscina bem grande.

As águas estavam proibidas a mergulho por causa da lama e de uns bichos que se pareciam a alforrecas. E, não tardou a explicação de Mara, que já sabia ler, ao irmão que via no papá um empecilho à sua vontade de mergulho.

- Mano, o papá tem razão. Aí está escrito: “proibido tomar banho nesta lagoa”. É por isso que o papá não nos quer deixar tomar banho nessa. – Explicou, recebendo aprovação dos pais que se rejubilavam a cada vez que lesse um aviso ou outdoor e explicasse ao irmão mais novo.

Sem nado, as atenções voltaram à comida que demorava. A mulher, já impaciente, estava de pé, pronta a ir tirar esclarecimentos, quando o “gerente” se apresentou para o que chamou de uma pequena desculpa.

- Já está tudo pronto. Só falta o feijão!

- Só falta o feijão? Preferia que faltasse o kakusu, que pode ser pescado por mim, do que o feijão. Queres que aguarde aqui três horas a espera do feijão? – Questionou Kitomangimbe, já com um vinco visível no rosto.

- Não chefe. Já está a ferver, mas vai levar ainda algum tempo. É só mesmo o feijão que está a faltar.- Justificou-se, esfarrapado, o rapaz.

- Traz já o que tens e o feijão vem mais tarde. - Ordenou a Senhora Kitomangombe, algo aborrecida.

Quatro peixes enxutos, bocadinho de mandioca e batata-doce, um molheco de tomate e cebola picada e nada mais. Os peixes pareciam ter sido conservados em geleira, depois de grelhados, e aquecidos. Estavam secos e sem temperatura interior. O resto foram só reclamações.

O feijão, ainda fervente, serviu mesmo o seu papel de afugentar os clientes que reclamavam de mesa em mesa.

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

O COMISSÁRIO “PAPA-GALINHAS


Nasceu num sábado distante na memória, numa aldeia enfiada na sombra da cordilheira que separa a região plana e majestosamente servida de florestas entrecortadas por rios serpenteantes e a outra, a plana e alta, prenhe de fontes d’água e onde a relva faz festa entre árvores e arbustos preguiçosos. O dia de semana serviu-lhe de nome de baptismo. Como havia tantos outros Sabalo, acrescentaram-lhe o apelido Soba, dado o facto de ser filho de soba e passou a ser conhecido por Sabalo-a-Soba (Sabalo, o filho do soba).

Kambondondo, seu pai, era numa aldeia ribeirinha, ali nas encostas do Longa, uma das cinco pessoas mais influentes, de onde despontavam, para além do regedor e soba, o soba o catequista, o comerciante e o “sô kifiormeiro”. Professor ainda não havia e os que podiam soletrar uma convocatória do chefe de posto do poder colonial contavam-se entre dezenas de aldeias aos dedos de uma das mãos.

 Kambondondo já tinha contactado o catequista para alfabetiza-lo a fim de poder descodificar as convocatórias do Soba e apresentar-se ao posto da data e hora certas ou mesmo se escapulir quando a convocatória fosse simplesmente para as desprezíveis palmatoadas desferidas impiedosamente pelos serventes cipaios.

- Nessa terra de ignorantes tenho de fazer da minha prole a diferença. O Kakonda tem de ir estudar no Posto e ficar professor. O Ngunza tem de seguir profissão de “karfaiate” e o Sabalo, quando idade chegar, vai também no posto aprender com os irmãos que estão a subir na escola. – Confidenciou kambondondo certa vez à mulher Nzumba Kanzenza.

E assim procedeu. Kakonda segui primeiro, já na casa dos treze anos. O irmão do pai que oferecia força na roça do alemão de origem judia recebeu-o como filho e com ele ficou até completar a quarta classe e o curso de professor de posto. Kakonda voltaria à aldeia natal apenas para se casar e fundar a primeira escola de Kuteka.

Seguiu-se Ngunza. Esse foi para a grande cidade aprender a juntar e descodificar letras e alfaiataria que se tornara profissão de eleição no tempo das camisas cintadas e calças boca-de-sino.

Mais dado ao segundo oficio do que ao primeiro, Ngunza se governou até aos dias da tropa obrigatória instituídos no pós-revolução. Regressou à aldeia de mãos preenchidas pela mulher, uma jovem ambaquistas que transbordava beleza, e dois filhos. Ainda foi a tempo de fechar umas classes e cumprir o sonho do pai “ser professor” também.

Chegou a vez de Sabalo. A idade escolar coincidiu com os dias da revolução. O horizonte começava a abrir-se. Kuteka começou a encolher, ante a migração para as grandes cidades que ofereciam empregos e aprendizagem de profissões. Estava na moda “ir à capital trabalhar para juntar a cama, a bicicleta, a louça, o rádio e a roupa para os dias de noivado”. Os primeiros regressados da capital eram donos de estórias e histórias inauditas e carregadas de curiosidades. Todos os jovens daquele tempo pretendiam conhecer a capital e lá se “empregarem” em casa de gente da baixa onde pudesse aprender a ler e escrever com os pioneiros de casa e amealhar uns tostões para a roupa, o rádio, os talheres, e o vestuário que diferencia na bwala o morador permanente e o regressado da cidade. Sabalo ainda sem idade para trabalho, foi substituir o irmão Kakonda na casa do tio Kapitia e lá ficou até completar a quarta classe. Era já tempo da “ditadura do proletariado” e o diabólico chefe de posto tinha sido substituído pelo comissário comunal. Os serventes cipaios, agora em desgraça e alguns a pagar pelos males que infringiram a seus irmãos de pele, enfrentavam discriminação ou se refugiavam em áreas longínquas onde o eco de suas acções tenebrosas no tempo doutra senhora não tinha chegado. Os ce-pe-pe-as eram agora os auxiliares do comissário na manutenção da ordem e caça aos contra-revolucionários. Os o-de-pés e be-pe-vês, diferentes dos cipaios, fiscalizavam nas aldeias e informavam aos ce-pe-pe-as quando não fossem os próprios a cuidar da manutenção da nova ordem instituída.

Sabalo foi crescendo em paralelo com o poder do comissário que não era como o chefe de posto que mandava capturar à força da caçadeira trabalhadores para a construção das rodovias, mas era em quem repousava a autoridade do Estado. O comissário era um mwata. Pessoa de muito respeito, na comunidade e que tinha acima dele outros dois comissários, antes do Ministro: o comissário municipal e o comissário provincial.

- Sabalo, agora que o kaputo já foi na sua terra, estuda para chegar também na categoria de comissário. Fica na organização e se entrega no estudo para ajudar os teus irmãos da aldeia. - Orientou Kambondondo já na curva da vida.

Sabalo completou a quarta na comuna. Foi ao município e fez a oitava. Os confrontos que se seguiram aos desentendimentos do Alvor fizeram-no seguir à capital. Antes passou pelo “brigadismo professoral” e foi destacado na Comandante Dangereux. Seguiu à capital onde para esquivar a “vida kwemba” se alistou nas ce-pe-pe-as que o enviaram para fora. Quando os ventos do Lesta derrubaram os muros foi devolvido à terra e cá à profissão o estudo. Foi subindo. De grau a degrau como a galinha enche o papo grão a grão até chegar a subcomissário.

Passava uma trintena de anos que o Kuteka não se lembrava dele. Sabia-se ainda apenas que era homem grande em idade, corpulência e estudos.

- Eh, o mano Sabalo agora é homem grande. Pessoas que se vergam quando lhe cumprimentam são chefes do governo na capital. - Comentavam os mais iluminados de Kuteka.

A sua fama já corria toda a savana e o planalto. Os mais novos queriam conhecê-lo e os mais velhos revê-lo. Sua ida à terra do cordão umbilical tardava. Todas as cartas que recebia apontavam a saudade do seu povo: contemporâneos e conterrâneos que se tinham preparado para recebê-lo como os súbditos da idade clássica recebiam seus imperadores, mas a visita de Sabalo tardava. Falhava por falta de tempo. Ora por missões de serviço que se sobrepunham às suas promessas, ora por razões climatéricas. A picada que corta aquela serra montanhosa só permite circulação até de um jeep em tempo seco.

Correram ansiedades e promessas durante cinco anos, até que mãe de Sabalo adoeceu. A questão era emergencial. Levar a mãe para um hospital de referência era uma obrigação. Já tinha construído na capital uma casa para a progenitora, mas ela se recusara redondamente a deixar o seu kikelé, apetecível peixe do Longa, e suas gentes que a tinham como matriarca da aldeia.

Sabalo fez-se à estrada. Onde terminou o asfalto, fez-se à picada. Para trás deixou a comodidade da cidade, os rios caudalosos em tempo chuvoso, as montanhas cobertas de neve madrugadora, os zigue-zagues da estrada escorregadia e chegou ao Kuteka. Fez-se festa em casa, mesmo com a mae enferma. A alegria do povo era tanta enão se pôde proibir a festa espontânea que assinalava o reencontro com o “homem grande” nascido na aldeia de Kuteka.

- Mano Sabalo, desculpa, kota Naldo, assim agora o mano lá no serviço é quê? – Indagou Kaphele, jovem iluminado para os limites académicos da aldeia.

- Sou Comissário. - Respondeu.

- Comissário? Só comissário, tipo o chefe “papa-galinhas”?

- Sim, sou comissário da polícia nacional. Mas explica-me ainda isso de “chefe papa-galinhas”.- Solicitou o polícia.

Sentiu-se um calar que levava quase desolação dos jovens. Sabalo não percebeu e insistiu na pergunta: “vai jovem, explica-me por favor, também quero aprender convosco”. Toda a volúpia inicial ase tinha evaporado. “Come galinhas ou papa-galinhas” era o epíteto atribuído ao comissário comunal, cuja regalia não passava de oferta de cabritos e galinhas quando visitasse as aldeias. A frase “Sou comissário” levou-os a se lembrarem das visitas do carente comissário comunal que mais não tinha senão galinhas no seu quintal.

 - Sim Kaphele, sou comissário da polícia nacional. Um grau que se equipara ao general de duas estrelas e café no ombro. – Voltou a explicou o para-militar, desta vez mais elucidativo.

- Ah, assim é que está bem. Afinal, o nosso mano não é “papa- galinhas”, é general da cê-pê-pê-â. Manda em todo o país e está acima dos dois comissários da comuna e do município. - Rematou convencido Kaphele que, de imediato, ordenou mais lenha na fogueira e força nos batuques.
E a festa prosseguiu noite adentro.

Obs: texto publicado pelo Semanário Angolense, 31.01.2015.