terça-feira, 19 de agosto de 2014

O RELÓGIO NUM LARGO DESAVERGONHADO

Nem a mulher nua, lindamente esculpida em bronze, enfeitando com os seus seios-laranja o famigerado “Largo da Pouca Vergonha”, afugentou os bienos mais conservadores que foram assistir à publicação do romance "O Relógio do Velho Trinta" e a premiação da corrida de atletismo alusiva ao 89º aniversário da cidade do Kuito. Todas as idades estiveram no largo, agora rebaptizado, pelo menos oficialmente, por Espelho d´Água.
Os jovens perdedores da corrida xingaram a organização pelo fraquejar de suas próprias pernas enquanto os vencedores nas distintas categorias tiveram felicidade a dobrar: o prémio foi pecuniário e, aí mesmo, perante “O Relógio do Velho Trinta”, não tiveram como não fazer gosto à leitura. Acederam ao convite formulado por Álvaro Alves, jovem poeta do Bié que lera o romance de véspera, e fizeram uma fila para o livro e a dedicatória.
- Soberano Canhanga traz a vida nas nossas embalas, nas vilas e nas cidades. Retrata a dureza da vida na tropa e nas cidades fustigadas pela guerra, como foi a nossa. Escreve sobre o ‘salve-se quem puder’ que assolou e assola ainda a nossa sociedade. Reporta-nos sobre o negócio com os mortos ou a alegria com suporte em tristezas alheias... O nosso autor convidado às festas do Bié, traz-nos também a realização de dois: o primeiro é o seu que consiste em homenagear um colega finado. O segundo é do personagem Clovis que sonha, escreve e publica um livro… Espero que leiam e sigam o conselho de Clovis que nos apela no fim da obra em presença que “Álcool só na ferida!” - Concluiu o também director provincial da Cultura, na presença do vice-governador para a esfera política e social, Carlos Ulombe da Silva.
- Wiñi wo Vye kalungi! - Saudei ao que em coro a multidão respondeu:
- Kuku!
- Vim cumprir o que prometi aos bienos e ao governo da província que co-patrocinou o meu livro. Ele reporta, de forma ficcionada, tudo aquilo que acabou de dizer o amigo Alves. Tem muito mais. Tem também ideias, experiências e conselhos para que possamos fazer mais do que aquilo que estão a fazer hoje os nossos mais velhos. Temos de ler muito. Ler livros académicos, lúdicos, filosóficos, religiosos, etc. Quem lê transfigura-se. Aprende sempre alguma coisa e isso fá-lo tornar-se pessoa diferente.
Mais do que vender livros vim fazer amizades e fazer novos leitores. Muito obrigado ao governo, muito obrigado aos bienos. Ndapandula Ciwa! – Despedi-me para atender os potenciais leitores, já fartos da manhã de sol ardente.
Perto de cinco dezenas de assinaturas e dedicatórias, entre vendas e ofertas. Antes de arrumar as caixas, o director da cultura faz outro apelo.
- O camarada escritor tem de estar presente, à tarde, no recinto de festas onde montamos já um espaço para expor o livro. Quem não pôde comprar  agora vai ter a oportunidade de faze-lo durante os dias de festa. – Apelou o homem da cultura.
O espaço novo, construído à saída da cidade, entre a unidade penitenciária e o mercado do Cisindo, apresenta acessos asfaltados. O largo, também asfaltado, comporta marcações para dois campos para desportos de sala. À volta, foram montadas tendas e barracas em que se vendem produtos predominantemente agro-pecuários e artesanais, notando-se ainda exposições de veículos automóveis e equipamentos agrícolas mecanizados, o que enche de alegria os habitantes do Kuito que vêm a sua cidade a crescer.
A rádio local não quis ficar atrás e juntou-se à “festa do Relógio”. No estúdio improvisado, fizemos um pequeno concurso. Maria de Fátima teve de apanhar dois kupapatas para receber das mãos do autor o livro que já estava autografado. Ganhou ainda a promessa de receber outros títulos do autor à medida que fosse trocando impressões sobre o livro lido.
Quando o sol de sábado, 17 de Agosto, se despedia, Álvaro de Boa Vida Neto chegou ao local de festas e tratou de visitar todos os expositores.
- Vou ler e depois lhe faço chegar os comentários. Não pare de escrever e sempre que precisar da nossa ajuda nos contacte. – Despediu-se o governador do Bié, deixando o meu coração aos pulos.
Já com “O Relógio do Velho Trinta” exposto até 31 de Agosto no recinto de festas do Bié, decidi voltar ao Largo Espelho d´Água. Havia água límpida nos repuxos, mas o espelho que mais atraia as crianças, jovens e idosos de todos os sexos era mesmo a estátua da linda que “retirou a roupa de forma desavergonhada”, dando o nome ao espaço.
Foi bom ter visto jovens e adultos sem vergonha de leitura, dando-me certeza de que com mais campanhas e palestras nas escolas e universidades o Bié terá mais leitores e mais conhecimentos.
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Sobre o livro
A literatura não é apenas um exercício lúdico. É também uma das vias de registo histórico, pois os escritores, partindo da realidade tangível e imaginável do seu tempo, criam e recriam cenários e personagens verosímeis que podem ajudar as gerações vindoura a compreender e estrutura social, política e psíquica do tempo descrito. É o que os meus leitores de amanhã e alguns de hoje encontrarão em “O Relógio do Velho Trinta”.
E como o sujeito narrador é o mesmo nas obras de Soberano Canhanga, os leitores mais atentos descobrirão uma espécie de continuidade entre o romance de estreia “O Sonho de Kaúia”, onde o personagem principal, Kaúia, pretendia ser jornalista e  “O relógio do Velho Trinta” cujo sonho de um dos personagens é o de ser escritor, ou seja, escrever e publicar um livro. Será que chega lá? Esperemos que, no mínimo, Clovis se esforce e chegue ao próximo livro.

O que peço aos leitores de “O Relógio do Velho Trinta” é que cheguem ao fim do livro, juntando e separando as várias estórias que o  tornam rico em vivências e memórias ainda recentes.
"O Relógio do Velho Trinta" é também um “termómetro” que mede e nos apresenta “temperaturas” sociais e situacionais dum território que se assemelha com o nosso país, Angola, e com suas gentes. É uma narrativa sobre reencontros e desencontros…
 
Soberano Canhanga
Kuito, 16 de Agosto 2014.

sexta-feira, 1 de agosto de 2014

AMOR A MACAU

O choro de Joaquina, prima e amicíssima de Ndinha, tinha tanto de pictórico quanto de realismo. As construções executadas pelos chineses e sua fraca durabilidade e qualidade estavam na boca do povo. À semelhança dos anos setenta do século XX, quando tudo o que fosse de fácil descartabilidade era atribuído a Macau, hoje também é assim: carro que não dura é chinês. Mulher estéril é da China. Bebé que morre precocemente é filho de chinês e até já se diz que doença de mulher grávida de chinês é colo aberto.

Ndinha tem 25 anos e uma estrada quase feita no campo do namoro. Entre simples deleite e busca de parceiro já tentou de tudo. De miúdos do bairro Sete e Meio, ao Cazenga, a jovens da baixa conhecidos em festas ou através de colegas de escola. As suas amigas de infância estão já emancipadas e com nenés às costas. Ela não. Os moços do bairro apartam-se dela como foge diabo da cruz.

A sorte de Ndinha tardava e era objecto de chacota por parte de meio mundo.
- Ndinha é lavra comunitária e não dá para ter como nora. - Atestavam as mães conservadoras para afastarem seus filhos da "dama do bom mataku", como também é tratada pelos jovens mais ousados na apreciação dos atributos e distribuição de epítetos.
 
- Ó menina, - apelavam as idosas do bairro, - estamos a ter ver só assim. A tua leva já passou. Veio outra e também já são mães, menos você. Assim encalhaste ou hipotecaste a nascença na ndumbaria[1]? - Questionavam as idosas mais espevitadas, enchendo a boca de palavras, mesmo faltando nela os dentes para a ngongwenha[2].

Certo dia cidade inteira ficou sem água. Em busca do concorrido líquido da vida. Ndinha adentrou o estaleiro da construtora China Ziang Do, tendo trocado olhares e depois gestos com TON WANG, empregado daquela obra. Estava lançada a primeira semente. Depois veio a rega, a sacha e o adubo. Até chegar a semente no seu ventre, não levou muito tempo. Os parentes tomaram conhecimento e fizeram advertências.

- Os chineses são população prisional. Não tarda, ele desaparece. Queres ver como se acorda mijada? Dorme com criança! - Advertiu Gaspar Kaquinta, tio de Ndinha, sem que ela lhe desse ouvido.
- Ó Ndinha, estás a cuspir, nê? Toma então cuidado porque obra de chinês dura pouco! - Aconselhou Joaquina, amiga e confidente.
Gaspar Kaquinta foi mais longe e convidou mesmo a sobrinha a fazer ou reconhecer uma marca especial ao seu asiático preferido, para que fosse fácil identifica-lo entre tantos parecidos, na hora dum provável dikulu[3].
- Lhe põe um kirimbu[4] que seja só teu. Na obra são muitos e fica custoso saber quem é quem. É preciso saber encontrar a agulha no meio da palha e não deixar escapar o autor, em caso de necessidade. - Aconselhou Gaspar, que a levou ainda a visitar a sua casa, construída há menos de três meses e que já apresentava fissuras por todo lado.
- Lhe manda ainda aqui ver a pouca vergonha dos conterras dele e ver se me ajuda a fechar os abrigos das baratas. - Falou carregado de ironia.
Ndinha fez ouvidos de mercadora. A conversa entrava por um ouvido e saia pelo outro até que os parentes deixaram de pôr colher em sua sopa.
Transcorreu o tempo. Ndinha engravidou e a barriga cresceu. Joaquina, enquanto amiga, foi alertando para que tivesse cuidado e tirasse proveito da situação de gestante.
- Não pode te engravidar assim, só à toa, sem nada. O cunhado Ton tem que te arrendar uma casa e te assistir em tudo. Isso de se tirar frio no quarto do estaleiro, onde enquanto um trabalha outro dorme na mesma cama, não fica bem a uma moça de família. Manda-o arrendar casa e põe lá colchão e condições. Mulher com colo aberto tem que dormir bem, comer bem e não fazer esforço. Se você arranjou já estrangeiro é para ter boa vida e não mais essa de se arrastar na lama da amargura. -Aconselhou a prima, sempre brincalhona mas atenta e pedagógica.
O tempo passou de forma arrastada. Ao oitavo mês, quase nove, mas não era ainda altura do parto, Ndinha pariu. Menina achocolatada pela mistura do negro dela e amarelo dele. Olhos rasgados e preguiçosos de quem foi forçado a tê-los. Menina, primeira de cor na família, cabelo era de pôr tesoura e vender às moças da carapinha dura.
As tias de Ndinha, vindas de longe, levaram misangas[5], óleo de mupeke[6] e outras oferendas para a bebé e a kivadi[7].
- Qual é o nome que lhe deram? - Indagou Nga Zefa enquanto ajeitava a sacola repleta de lembranças.
- Nome que lhe deram é TonDinha, junção dos nomes dos progenitores. - Respondeu a tia Teresa, parteira e conselheira da família.
Tudo parecia correr de forma remendável. Ton apareceu com os seus irmãos gémeos. Comeram e beberam até se fartarem. Fez-se festa. Ton prometeu casa e mobília, fogão e televisão.
- Caça tê. Telefisã també tê. Tá bom, nu tá bom?
- Tá bom. - Confirmaram os parentes de Ndinha, embora cada vez mais cépticos.
O tempo, esse recurso esgotável e não renovável, foi passado. Ton desapareceu, ou melhor, mudou de looking[8] ou de obra. Ndinha, sem fraldas para Tondinha, procurou insistentemente por ele e não o encontrou. Apenas outros obreiros a ele parecidos e que respondiam:
- Ton Wang aqui no tem!
Correram os dias amargos. Tondinha adoeceu e de Ton nem uma nem duas. A família começou a temer pelo pior, o que não tardou.
Tondinha levada às pressas à pediatria do hospital de Kapalanca não mais respirou. Foi emprestar sua cor aos tijolos.
De regresso à casa, com a menina esticada e embrulhada em lençóis que recordam os céus, Joaquina, desesperada, entornou uns frascos e no seu canto chorou cantando:
- Ndinha, minha prima, eu te avisei. Obra de chinês não dura. Tio Gaspar te acordou. Ate à casa dele te levou para veres que obra de chinês é maiuia! Tia Teresa, ‘infirmera’ de muito tempo, ainda te avisou que barriga de chinês só dá colo aberto. P’ra quê tanta teimosia, minha amiga? É mesmo só vontade de coisa pequena?!
Assim foi a estória de Ndinha e seu querido Ton de Zuang Hoo.
Obs: Publicado no Semanário Angolense, 13.09.2014.



[1] Prostituição (termo ambundu).
[2] Pasta feita com torrada de mandioca e açúcar.
[3] Problema; embaraço.
[4] Marca; carimbo (termo ambundu).
[5] Colares (kimbundu).
[6] Óleo de fabrico caseiro usado pelas mukubais (Huila/Angola) para adornar o cabelo.
[7] Parturiente (kimbundu).
[8] Aparência (do inglês Look).