Este texto é parte do livro "O Coleccionador de Pirilampos"
Makenzo
e a cunhada discutiam, manhã cedo, sobre as causas da morte do avô.
Xinga
Wanga tinha morrido, passavam seis dias. Era véspera do komba-di-tokwa[1] e mesmo a família mais próxima não estava
esclarecida quanto ao que levou o Mais-Velho ao mundo do descanso sem fim.
- Mas oh cunhado, de quê então que morreu o vosso avô? - Perguntou Dina, irmã jingongo[2] de Diana, a mulher de Makenzo.
O jovem, trinta e três anos às costas, idade de Cristo, pensou, repensou e reteve a resposta.
-
Cunhada, está um pouco difícil dar resposta consentânea.
- Morreu de consentânea? - Que doença é essa então.
Makenzo
tinha a mania de falar bom português. Era professor dessa cadeira e não media
os níveis de literacia dos seus interlocutores que eram todos os dias
surpreendidos com as novas aquisições do Professor Kenzo, como também era
conhecido.
- Olha Dina, sua tola, consentânea não é doença. Doença mesmo é uma jovem ter um dicionário em casa e não o consultar. Isso é que provoca um mal maior aos jovens vivos. Deixa lá o avô Xinga que ele está bem na terra do descanso.
Kenzo
e Dina eram tão amigos que não havia fronteiras nas suas conversas e os ataques
verbais de Kenzo já eram vitaminas para Dina que se deleitava em ouvir
palavras desconhecidas do seu pobre vocabulário. Aproveitava, também ela, lozar[3] às suas amigas sempre que podia. Só
que com um senão: nem sempre os vocábulos correspondiam aos contextos.
-Mas,
o avô então morreu de quê? - Insistiu ela, já meio cabisbaixa por não ter
conseguido obter a resposta que prometera às amigas do bairro indígena.
-
Olha, gostaria que não insistisses nisso. Vamos chorar o Mais-Velho e acabou. –
Disse Makenzo, num tom duro, como quem quer pôr ponto final à conversa.
-
Mas as pessoas me perguntam. Sabes que sempre que vou ao mercado ou noutro
sítio elas me confundem com a Mana Diana e perguntam se avô do marido morreu de
quê.
Kenzo
deu duas voltas sobre a palmeira que ensombrava o quintal. Era uma árvore nova
que tinha dado os primeiros cachos de dendém. Tão jovem quanto eles, Kenzo e
Dina. O professor recuou e respondeu:
- Morreu de parede!
-
Hum? De parede?
Dina
não se conteve e soltou um grito desesperado: - Waéééééé! Avô finale morreu
mbora de parede, já viram azar?
O grito espantou os demais familiares que preparavam a batata-doce, a lambula[4] e a kisângwa[5] para o último dia do óbito.
- Mana Joana, você que é enfermeira antiga, me diz ainda. Parede também é doença? - Indagou Zeferino Gaspar, um vizinho que acompanhava a conversa.
- Oh Sô Zeferino, você com essa idade toda ainda não sabe o que são doenças e o que são brincadeiras do Kenzo que gosta de inventar palavras para impressionar as moças do bairro indígena?
- Oh tia Joana, mas o Kenzo falou com uma seriedade que me pareceu ser verdade. Deve ser nova doença. – Interrompeu Sá Domingas, conhecida interpretadora de sonhos no bairro. Há muito que é tida como a melhor vidente de Luanda e já comprou dois Hiaces e um turismo nesse seu ofício. É por isso uma senhora de respeito que quando abre a boca até as mulheres mais rabujentas do Sambizanga lhe dão ouvidos. Quando não tem pacientes com sonos por interpretar, Sá Domingas vende peixe no Roque Santeiro, seu negócio desde jovita[6]. É também a fornecedora de peixe aos vizinhos do bairro indígena que deixaram de ir ao mercado. É por isso que está no óbito do Mais-Velho Xinga Wanga.
A intervenção de Sá Domingas serviu para conter os ânimos por apenas alguns instantes. Era uma conversa de livros, de ciência e não de sonhos nem de peixes. Aquela doença prognosticada pelo professor Kenzo, um filho que todos viram crescer até se formar no estrangeiro, era estranha. Se o morto fosse outra pessoa, o Velho Xinga teria mesmo exclamado madiwano[7], como ele fazia sempre que algo estranho acontecesse. O burburinho começou novamente a ganhar corpo e só parou quando Kenzo voltou a pôr os pés no quintal de chapas de zinco com uma caixa de cerveja Biker entre as mãos.
-
Mano Kenzo, nosso rapaz de confiança, - chamou carinhosamente Sá Domingas - nos
explica ainda esta doença que matou o avô. Sabes que amanhã é dia de
komba-di-tokwa e as coisas todas têm que estar bem esclarecidas para as pessoas
irem embora para as suas casas sem dúvidas. Consentânea é doença de quê, meu
filho? - Questionou Sá Domingas suplicante.
-
Avô Domingas, eu estava a explicar a esta pacóvia da cunhada Dina que não tinha
uma resposta certa sobre a morte do avô que, calculo, tenha morrido de parede. É
uma forma satírica de amainar a minha dor. Na verdade, o avô morreu de uma
contusão causada pela derrocada dos adobes[8]
quando dormia na sua choupana.
-
Ah! Agora sim. Então foi a parede que o matou, não e? - Questionaram as
senhoras em coro. – Então o menino tem razão. Morreu mesmo de parede! - Concluiu Sá Domingas.
[1] - Do
kimbundu varrer as cinzas; cerimónia que acontece no sétimo dia da morte de
alguém.
[2] - Do
Kimbundu gémeo.
[3] - Do
Kimbundo Ku loza; o mesmo que disparar.
[4] -
Sardinha.
[5] - Bebida
feita de múkua ou milho e açúcar.
[6] -
Adolescente; jovem.
[7] -
Interjeição em kimbundu; o mesmo que azar.
[8] - Blocos
para construção feitos de barro cru.