Naquela
sexta-feira de Maio de 1790 a aldeia de Wanga Kalunga tinha despertado com um
grande alvoroço. O sino das más notícias tinha tocado à madrugada, sinónimo de
alguma praga à volta ou despedida de um dos notáveis da aldeia ou do reino de
Tata Ngunji.
E,
como as más notícias correm o mundo, até os reinos vizinhos do Além-Monte
estavam de olhos em Tata Ngunji e, particularmente, no seu Estado Livre de
Wanga Kalunga que tem os aldeões estacionados à volta da grande mulemba[1]
das reuniões.
O sol, ainda sem força, marcava envergonhado os primeiros passos. Apressados para o Jango das boas e más notícias estavam todos os aldeões: mulheres grávidas e outras por engravidar, homens válidos e inválidos (também chamados de homens sem sombra), crianças sãs e doentias, velhos trôpegos e moribundos, todos. Nus e vestidos às pressas. Ninguém queria que “o céu lhe desabasse a casa” ou ouvir de bocas terceiras as más novas que tinham acontecido ou que estavam por acontecer. Tamanha era a preocupação motivada por aquele madrugador sino dos maus agoiros.
-
Nessa aldeia, onde quem conta um conto lhe acrescente dois pontos e quem
reconta lhe acrescente cinco, não é bom ficar em casa e esperar que te contem.
– Disse Ngan´Oxiki, noventa anos às costas.
O
idoso, que com coragem e últimas forças puxou do casaco e bengala, era o
conselheiro geral da aldeia e do Soba Xisa Wanga e gozava, por isso, do
benefício de receber em sua libata[2],
para consulta ou prestação de informação sobre as últimas ocorrências na
aldeia, no reino e até mesmo nos Estados vizinhos. Mas Ngan´Oxiki foi também.
Para
os demais aldeões de Wanga Kalunga a ausência em reuniões colectivas era punida
com admoestações simples, trabalhos sociais na aldeia e ou na lavra
comunitária.
Mais
o sol caminhava para o centro, mas subia a apreensão do povo. Pior ainda porque
apesar de todos estarem no local das reuniões não se fazia presente o soba Xisa
Wanga.
- Mas,
porquê que o ngana soba ainda não está aqui? - Questionavam-se os mais críticos
da aldeia, numa altura em que a impaciência dos mais idosos acelerava as
cachimbadas e o avolumar do fumo que pulverizava o ambiente.
Lá
dentro, na Zemba[3]
do Soba, Kabezo e Kixindo, mulher e filho do soberano, tudo faziam para
reanimar o soba que estava moribundo e poderem apresentá-lo aos seus súbditos,
como era de costume secular. O soba não pode viajar, nem que seja para a morte,
sem despedir-se do seu povo e a excepção à regra não era de admitir.
Xisa
Wanga, com uma temperatura de assar kabwenha[4],
tremia de fio que nem galinha no frigorífico. Na tarde anterior, quando
revistava as suas armadilhas à volta da lavra, sentiu um ligeiro pico no
calcanhar direito. Corajoso como é, o soba não deu muita importância. Tomou o
seu banho vespertino e segui para casa sem sequer olhar para o local afectado.
Julgou que se tratasse de um pico qualquer, daqueles normais que se sentem
quando se anda mal calçado pela mata. Porém, o frio que lhe congela o sangue e
lhe assa a carne ainda viva, faz da família desconfiar de outra coisa. Uma
mordedura perigosa, um envenenamento, se calhar…
-
Meu povo! Por favor arranjem transporte porque o velho está mal. - Irrompeu da
libata o jovem Kixindo, num tom trémulo e dirigindo-se ao grosso da população
que aguardava ansiosa pelo soba e pelas más notícias.
-
Chamem o Kimbanda, chamem o Enfermeiro e chamem também o catequista. Cada um
vai fazer o que sabe e o que pode. – Emendou o ancião Ngan´Oxiki, sábio como
ninguém naquelas paragens.
De
imediato, o comerciante compareceu com a carrinha. O kimbanda com as suas
mahambas[5]
e raízes medicinais; o enfermeiro com os seus utensílios: medidor de pressão
arterial, estetoscópio, mala de primeiros socorros, entre outras ferramentas; o
catequista com a sua bíblia, kamba-dya-mwenho[6],
terço e miniatura de santos. Cada um apelava à eficiência da sua ciência, dos
seus santos e arcanjos para poder salvar o soba que gozava de grande aceitação
do povo, devido à sua abertura ao diálogo e negociação e solução comparticipada
dos problemas do povo.
-
Avó Grande, assim era tratado o velho Ngan´Oxiqui, já temos a carrinha do Sô
Marques com um colchão de espuma e um lençol novo. – Disse Pascoal Kaquarta, um
jovem estimado pelo seu dinamismo e perfeccionismo.
-
Vamos levar o papá soba ao hospital da Vila de Tala Boxi. É perto. São apenas
vinte quilómetros. - Disse o motorista Sabalo Kaphonde que, sem mais demora,
partiu a caminho da Vila, transpondo a serra que servia de cortina visual com
outros povos do Além-Montes.
Durante
a viagem, a carrinha ocupada pelo doente, enfermeiro, kimbanda[7]
e o catequista era um mundo à parte. Um mundo novo que permitiu coabitar, pela
primeira vez, três ritos antes incompatíveis. O kimbanda, Kidady Wenji, com os
seus amuletos evocava a memória dos antepassados para que dessem mais tempo de
vida ao Soba. Mukwa-Kusanza, o enfermeiro, buscava os sinais vitais do seu
paciente e fazia pensos húmidos para poder fazê-lo chegar ainda com vida ao
Médico que já os aguardava no hospital de Tala Boxi. O catequista, Ngunga
Ngele, evocava nomes de todos santos conhecidos e outros desconhecidos para que
protelassem a chamada do soba… assim foi durante os vinte quilómetros. E todos
fizeram-no com dedicação e sabedoria o que permitiu que, embora moribundo, sem
fala e nem tacto, Xisa Wanga mantivesse a visão e enxergasse tão bem que ao ser
descarregado da carrinha, como caixa de ovos cujos donos pretendem que não se quebre
sequer um, o soba Xisa Wanga deparou-se com o símbolo do hospital que era uma
cobra enrolada num pau e deitando veneno num copo.
- Tatê! Outra cobra? - Exclamou, metendo-se
a correr num passo e velocidade quem nem mesmo o vento dum fechado cacimbo lhe
pôde parar.
Xisa wanga pôde sentir-se curado sem que uma
injecção ou comprimido lhe tivesse sido ministrado pelo médico.