(Este texto é parte do livro "O Coleccionador de Pirilampos")
Eram amigos desde o tempo da Mukaanda
quando ainda lhes faltava dentes na boca por completar. Desde os seus dez a
doze anos que mais pareciam irmãos do que amigos. Frequentavam os mesmos
bailes, a mesma escola, namoraram miúdas de mesmas ruas até que conseguiram
emprego de estivador numa roça de café, em Kunda-dya-Base.
Mukwateno, mais excêntrico, e também
grande apreciador de kangonha
parecia mais velho de Mutambuleno, um kapuqueiro
de dotes afinados.
Na manhã daquela terça-feira, depois
de um fim-de-semana prolongado, os dois cavalheiros decidiram permanecer em
casa, mesmo com a dureza da lei que estipulava faltas duplas para ausências em
dias imediatos aos feriados e fins-de-semana.
- Hoje não vou bumbar. – Ligou
Mutambuleno ao irmão Mukwateno.
- O que é isso, mano? Não sabes da
nova lei?
- Qual lei?
- Aquela “de dois para um”. Já te
esqueceste que hoje se faltarmos mamamos logo duas?
- Ah sim… mas… Há sempre uma forma.-
Afirmou Mutambuleno.
Não tardou, o autocarro da recolha
passou pela rua de Mukwateno e depois na de Mutambuleno, o permanente
insatisfeito, que ao longo do percurso de trinta quilómetros, da vila de Kunda
à roça, ia maquinando planos para a evasão ao trabalho.
- Mano, já imaginaste se fossemos
pedir ao boss uma dispensa?
- Como assim? Que diríamos? – Questionou
em réplica, já meio admirado, Mukwateno.
- Espera só. Quando chegarmos vou
fazer duas cartas e tu me acompanhas. Bastará aceitares o que eu disser ao
chefe Kaprakata.
A empresa trabalhava como de hábito.
Pessoas correndo de um sítio para o outro. Uns cuidando da estufa, outros dos
animais e outros ainda do plantio. Apenas o armazém estava em “hibernação”.
Parecia uma área morta embora estivessem aí dois homens de complexidade física
de meter inveja. Numa mesa de madeira, Mutambuleno redigia pesadamente uma
carta. A lentidão no soletrar evidenciava, para os que lá passavam, quão
sofrível era a sua redacção. Mukwateno, por sua vez, acondicionava uma carroça
de cebola que devia seguir para Bula-a-Tumba.
Sem ainda tempo para a revista
habitual em todas as secções e frentes de trabalho, o encarregado-geral,
Kaprakata, desdobrava-se em recepções de clientes e fornecedores, todos
desejosos de ter as contas acertadas. Foi naquele mesmo instante que irromperam,
sala adentro, os dois cavalheiros.
- Chefe Kaprakata, bom… bom dia. –
Saudaram aos soluços Mukwateno e Mutambuleno.
- Bom dia, colegas… que se passa?
- É nossa mãe, chefe, - Respondeu
Mutambuleno.
- Que se passa com vossa mãe?
- Está doente chefe. Hoje mesmo
ninguém conseguiu dormir. - Mukwateno sacou de um lenço de papel para enxugar
as lágrimas que corriam como rio.
- Chefe! Por isso viemos aqui para
falar consigo, chefe.
- E em que posso ajudar? Já a levaram
ao centro médico?
- Não chefe. Ontem, assim mesmo que
estamos a falar, a velha já estava no Kimbanda, mas o dinheiro que pediu não
temos. -Responderam num coro desafinado que levantava suspeições.
- Ok. Então querem adiantamento…
- Sim chefe é isso mesmo. Nê, mano? -
Interrogou Mutambuleno, buscando a confirmação do companheiro.
- Sim. Sim, mano. - Respondeu,
abanando a cabeça de baixo para cima.
O chefe fixou o olhar aos dois e de
seguida sentenciou:
- Ok. Ok… Vamos por partes. Mas
quanto é que vocês querem?
- Dois salários para cada um, chefe.
É que, como ganhamos pouco, queremos já juntar os dois adiantamentos para
completar a conta do “mestre” que está a tratar a nossa mãe.
- Mas posso falar com vocês, um de
cada vez? - Perguntou o encarregado.
- Sim chefe, “num tem prubulema”. Ou
tem? - Perguntou novamente Mukwateno ao companheiro.
- Não, chefe num tem. - Confirmou
Mutambuleno.
Lá fora, tudo parecia o mesmo, como
nos outros dias, excepto aquela intromissão dos dois M na sala do patrão como
era conhecida a sala administrativa.
Os cabritinhos medindo forças, as
galinhas cacarejando, o cachorro atrás das borboletas e o sol ainda preguiçoso,
desejoso de atingir o meio-dia. Na tonga
era momento apropriado para a rega. Kaprakata chamou pelo primeiro: entra o
Mukwateno.
- Então, mostra lá a tua carta. Como
se chama a mãe que está doente.
- É mãe Isaura, chefe.
- Mas somente Isaura? Não tem
sobrenome?
- Outro nome, chefe?
- Sim. Sobrenome... Note bem… Eu sou
Adolfo Kaprakata. Calculo que ela seja Isaura fulano, por exemplo…
- Ah, chefe! (a coçar a nuca) “Se
chama” Isaura Muzuleno.
- Ok. Pode sair e diz para teu irmão
entrar imediatamente.
- E tu Mutambuleno, qual é mesmo o
significado do teu nome?
- Lhe recebem, chefe!
- Ah! Recebem-no. E você quer receber
dois salários adiantados…
- Sim. É isso mesmo chefe.
- Ok. Vamos a isso. Como se chama a
sua mãe?
- Chefe é aquele nome mesmo que o meu
irmão disse.
- Sim, mas eu quero confirmar… Diz lá
para eu assinar já os vossos documentos.
(A coçar a cabeça) - Chefe! é mãe
Magui.
- Mas é só mesmo Magui? Não tem outro
nome?
- Chefe! Vou falar já minha verdade.
Eu não sei bem o nome dela.
- Oh, mas como assim? Ela é ou não é
sua mãe?
- Chefe! Vou mesmo já falar minha
verdade: é mãe do meu amigo!