sábado, 1 de dezembro de 2012

A FUGA DE NEHONE


Este texto é parte do livro "O Colecionador de Pirilampos"

Nehone está entre a alegria e a tristeza. Não sabe ainda ao certo o que lhe vai acontecer durante três meses de isolamento da sua família e amigas, as mais novas e as mais velhas. Vai entrar no acampamento, em local também ainda desconhecido por ela. Apenas as mais velhas da aldeia, um círculo muito restrito, sabe onde se vai fixar o acampamento feminino e o tempo em que vai durar o retiro.


Nehone já riu de alegria e também já chorou de tristeza. A menina, doze anos completados, sete classes feitas na escola pública, tem a consciência em guerra. Sempre que lhe falam do aproximar do dia lembra-se da aula de MGF que a escola e as madres condenam. Lembra-se também das lições que vem aprendendo desde criança, ainda no colo materno: “uma mulher Kwanyama só o é depois de sair da efundula[1]”.
- Mas, mamã, até eu que estudo também vou no acampamento?
- Nehone, minha filha, olha à tua volta. Todas as tuas amigas vão, és única que queres ficar? – A resposta-pergunta de Nanditemwa deixou a menina mais confusa ainda que correu ao seu quarto para descarregar a fúria contra os cadernos e os livros. Nehome abriu a mochila, despejou o material e jogou, um a um, contra a parede. O seu íntimo lhe dizia que algo estava errado. Só não encontrava palavras para esgrimir o que lhe vinha na alma. Trancou a porta, chorou por alguns instantes e adormeceu até ao cantar do galo.
Tudo o que sabe, de ouvir dizer, sobre efundula são estórias desencontradas de pessoas que elogiam e outras que condenam o rito tradicional. São mais de dez meninas que, no dizer das mais velhas da embala de Kambyote, já estão prontas para transitar de grupo etário. Todas as meninas que viram o fluxo menstrual este ano de 4791 vão engrossar o número reduzido de moças. As últimas saídas do último efundula já estão casadas, algumas com dois filhos às costas.
- Mamã, eu não quero fazer a infibulação. Na escola já disseram que é crime. Disse Nehone à mãe tão logo raiou o sol.
- Infibulação[2] é quê, minha filha?
- É aquilo que andam chamar acampamento das meninas. Que querem organizar para mim e as outras miúdas da embala. Eu não vou, mamã.
- Minha filha, estás a me ver com cara de poder ficar mais aqui se falhares nesse efundula? O quê que as mais-velhas vão pensar de mim e da família toda? Que eu eduquei mal a minha única menina?
- E porquê que a mãe não diz ao papá para mudarmos para a cidade?
Enquanto Nanditemwa e Nehone trocavam argumentos, mais ao estilo urbano do que noutras casas onde as meninas também reclamavam da participação no acto de iniciação feminina, ouviu-se um tocar do sino.
- Mamã! Parece que são eles. Tocaram já o sino. Assim há uma coisa que vai acontecer. Lhes diz que estou doente ou que fui ver minha madrinha em Pereira D´Eça[3].
Nehone tinha razão. Era dum pressentimento certeiro. Naxilupa, a mulher-mãe da embala de Kambyote, em Namakunde[4], tinha convocado todas as adolescentes que aguardavam pelo dia D para a cerimónia pré-acantonamento que consistia na feitura do dongwena[5]especial. Seriam vistas durante uma semana e partiriam depois para três meses de aulas num sítio onde podiam ser visitadas apenas por mulheres viúvas e sem contacto sexual. A puberdade que lhes tinha batido à porta seria celebrada com este ritual onde aprenderiam as danças milenares do povo, a cuidar da casa, da família, do futuro esposo, da lavoura, da ordenha das vacas, do mahini[6], do desfarelamento e trituração da masambala[7], da feitura do pirão[8]e, sobretudo, das técnicas nocturnas. A inteligência que Nehone evidencia na escola dá garantias a Nanditemwa de que a sua única filha venha a destacar-se no grupo, pressuposto importante para ser mulher dum osimanaya[9] ou um doutor da cidade.
Não tardou a chegada da mulher-conselheira da aldeia. Naxilupa passava de casa em casa fazer a convocatória oral. Nenhuma mão devia reclamar do desconhecimento dos preparativos da cerimónia. Já lá vão mais de doze anos desde que Naxilupa herdou a pulseira que a identifica como a mulher-mãe de Kambyote, a depositária dos ritos femininos do seu povo que pretende perpetuar a todo custo a quem respire o ar kwanyama.
- Com licença nesta casa de Nda Mufayo[10]! – A voz de Naxilupa é única e inconfundível.
- Salve, rainha-mãe, herdeira e depositária da nossa identidade! - Respondeu Nanditemwa.
- Filha amada, vim convocar a menina Nehone para a ndongwena da efundula que é na semana que vem - Disse Naxilupa num Kwanyama rebuscado.
- Mamã, não sei o que lhe dizer. Parece que a menina só vai entrar no ano que vem com as meninas mais novas.
 
- Como assim se ela está na embala e o acampamento é já no começo do frio? - Questionou intrigada Naxilupa.
- A mamã viu ontem aquela carrinha da missão que saiu na Ombanja[11]? Era a madrinha dela que veio buscá-la para uma semana no Oyohle[12].
A peregrinação ao local que acolhe o corpo hirto do rei dos Kwanyamas é o que mais se espera de um ovambo[13]. Agora dividida entre o dever de Nehone frequentar a escola de iniciação feminina e o outro, também sagrado, de visitar Oyole, Naxilupa abandona a casa abanando a cabeça. E vai indo levada pelo vento que sopra do sul ao norte. Precisará de encontrar argumentos para as outras mães da aldeia cujas filhas vão a efundula e evitar que haja outras desistências.
Preocupada está também Nanditemwa que precisa de esconder a menina até conseguir fazê-la sair da aldeia, lançada que está a mentira.
- Filha! Estou quase a cumprir o teu desejo, mas tens que fazer coragem e aguentar até que as madres venham. O teu pai já foi ao encontro delas e vão passar aqui numa hora em que ninguém está na embala. Vais à missão estudar até passar o tempo da efumbula.
Entre sóis ardentes e noites luarentas, Nehone suportou dezassete dias no minúsculo cubículo até a chegada da Land Cuiser da missão Católica. Exactamente no dia da partida das noviças da embala para o acampamento. As mulheres entretidas na organização da cerimónia e os homens cuidando da transumância[14] do gado que carecia de pastos e de água nas proximidades. Kambyote estava às moscas. As madres pararam a carrinha cobrindo a entrada da casa. Uma delas meteu-se porta adentro com um saco contendo um hábito e a habitual cabaça em que levam mahini.
Nehone pôde sair em segurança e levada ao internato feminino onde estudou enfermagem, tornando-se na mais conhecida activista contra a clitoritomia[15]entre os povos da sua região. É hoje uma médica casada com um rico fazendeiro e investigador da cultura Ovambo.


[1]- Cerimónia de iniciação feminina (do kwanyama).
[2]- Excisão genital; retirada total ou parcial do clítoris.
[3]- Antiga designação de Ndjiva, capital da província angolana do Kunene.
[4]- Município do Kunene.
[5]- Penteado tradicional Kwanyama (cada tipo de ndongwena tem um significado especial).
[6]- Leite fermentado em cabaças (termo kwanyama).
[7]- Milho-miúdo.
[8]- Pasta feita a base de farinha de milho ou masambala, bastante apreciado entre os povos do centro e sul de Angola.
[9]- Ferreiro; arte de siderurgia (termo kwanyama).
[10]- Alusão a Mandume Ya Ndemufayo, rei dos Kwanyama.
[11]- Capital do reino (termo kwanyama).
[12]- Local onde se encontra o monumento que homenageia Mandume, o lendário rei dos Kwanyama.
[13]- Povo que habita o sul de Angola e norte da Namíbia; o mesmo que Kwanyama.
[14] - Deslocamento sazonal de rebanhos para locais que oferecem melhores condições de pasto durante uma parte do ano.
[15]- Excisão; ablação do órgão genital feminino.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

O PAGADOR DE JUROS

Este texto é parte do livro "O Colecionador de Pirilampos"
- Júlio, em nome de quem jurarias, se tal te fosse exigido para celebrares um contrato que muita falta te faz? - A conversa entre Júlio Katerça e Joana Tako Dimoxi começou assim.
Joana sabia da intenção do amigo em cravar-lhe um kilapi[1], mas desta vez, estava determinada em não dar sem ganho. Aliás, dizia ela às amigas que “dinheiro não investido não se reproduz” e queria aplicar o que aprendeu no curso de empreendedorismo que frequentou numa das suas idas à estranja[2].
Apesar de mulher solteira e mãe de Kamoxi e Kayadi, ambos com pais desconhecidos dos parentes e vizinhança, Joana tinha a sua vida remendada. Começou com o “compra no armazém, vende na barraca” que depois transformou em boutique e agora já vai à Ásia, Europa e América em busca de negócios que lhe rendem bons trocos que dão até para pôr Kamoxi num colégio com aulas de música e natação. Vive a arrotar bacalhau, apesar de viver no Tunga Ngó.
Júlio Katerça é outra coisa. É um jovem qualquer do bairro, sempre pronto a qualquer biscate e sempre dado a contrair empréstimos, mesmo sem garantia. Muitas vezes, e já depois de muita porrada dos cobradores mais impacientes, Júlio acaba pagando com trabalho que varia entre acarretar água, fazer puxadas de luz, cavar fossas e tanques para água, entre outros serviços domésticos. Até chão já limpou em casa de Maria Paulina Kanivete, mulher catetense que tem pulungunza[2] de homem.
Naquela tarde de sexta-feira, Katerça tinha uma festa de contribuição. Daquelas em que os jovens combinam aparecer com um artigo: uma caixa de cerveja, uma caixa de frango, uma garrafa de wisky, uma caixa de gasosas, etc. As festas de contribuição são as melhores que há em Albaláxia e outros bairros de Atukaye, a capital da República de Atujimbi.
- Mas oh Júlio! Você, um sem calções nem peúgas, vai logo logo se meter com os moços da cidade e ainda por cima participar da festa de contribuição dos filhos dos mwatas? Vais contribuir com quê - Questionou Tako Dimoxi ao amigo.
 - Mboa Joana, deixa só. “Os wi são môs pancos”. Eu é que faço a riqueza daqueles ndegues[2] todos.
- Então se tu é que fazes eles ter dinheiro porque estás aqui a chorar que nem cachorro molhado a procura de lume?
- Deixa, minha mana. Dá só um kilapi e te resolvo no primeiro passe que eu fizer ainda hoje lá no Albaláxia.
Os moradores de Albaláxia, a parte mais alta  da capital do país, eram na sua maioria antigos combatentes contra os invasores Luz e Tanos que por lá chegaram no tempo da distração dos velhos que perdiam tempo a cortar a barba junto ao espelho, enquanto os Luz e Tanos se apossavam das mulheres, das fazendas e de tudo o que Deus dos mambundu[3] lhes tinha dado. Quando abriram os olhos era tarde mas, mesmo assim, fizeram um recúo estratégico para as matas onde permaneceram quarenta e um anos de catana na mão, até conseguirem correr com os invasores no ano de 5791. E foi uma nvunda[3] de fazer crescer barba e cabelo.
À saída dos Luz e Tanos, os antigos combatentes assaltaram o bairro do Albaláxia, os carros e o poder que pegaram com todos os dedos de pegar catana. Criaram uma nova forma diferente de viver e gastar, longe dos seus parentes e coterrâneos, como o pai de Katerça que quando chegou da mata já não encontrou casa desocupada e foi viver na bwala[4], com aqueles que tinham ficado só na clandestinidade.
Os filhos dos novos donos das casas de Albaláxia também se vestem e agem diferentes dos seus contemporâneos que se arrastam nas sanzalas e nos musseques, como a Joana Tako Dimoxi e o próprio Júlio Katerça que só tem amigos na montanha por ser um liambeiro de fama e conhecido passador de passas.
Mesmo pobretão, Katerça gosta de fazer-se passar por um bem-sucedido. Tem um fato que lava todas as quintas e uns sapatos que só calça à sexta-feira quando se dirige às festas do bairro do monte, o Albaláxia. De biscate em biscate e de dívida em dívida faz também a sua vida no submundo da droga que os filhos dos grandes de Albaláxia introduzem impunemente no país.
- Mana Joana, vais então ou não me dar o dinheiro que te pedi?- Voltou a questionar Katerça.
- Tu, Júlio, quando precisas de dinheiro até de mana me tratas, mas quando te peço um favor nem estás ai. – Desabafou Tako Dimoxi, sempre na defensiva.
- Não é nada disso. Às vezes já tenho compromisso, mas hoje é mesmo a sério. Não posso faltar ao boda. Há gente pesada que consome toda a noite e ainda leva para o stock ou para oferecer aos amigos ausentes.
-  Quanto é que queres? Vamos lá ver se dá. Qual é a tua garantia? – Perguntou Joana.
- Hum, vamos lá ver… Quero quinze paus a pagar depois de amanhã, sem falta.
- Depois de amanhã? Com que garantia? Só se pagares com juros.
- Juros? Ok. Eu pago com juros. - Respondeu Katerça a esfregar as mãos e esticando depois o braço.
Joana, no seu canto, mão no queixo, pensando nas voltas que daria para resgatar o valor, caso fosse adiante com o empréstimo ao vizinho Katerça.
- Só aceito se receberes os 15 mil Réis e pagares com juro de trinta.- Disse Joana decidida.
- Jurar trinta vezes? Sem makas[5]. Eu juro, eu juro, eu juro, eu juro… Juro mesmo. Eu pago!



[1] - Empréstimo em dinheiro.
[2] - Miúdos (do kimbundu).
[3] - Negros.
[4] - Aldeia; bairro periférico.
[5] - Problemas (do kimbundu).

terça-feira, 2 de outubro de 2012

BRANCA COMO A NEVE


 1-      BRANCA COMO A NEVE
Este conto é parte do livro "As travessuras do Jacinto"

Jacinto era um rapaz de 13 anos, adolescente hábil, que executava que executava as tarefas com rapidez e rigor. Nunca fugia à luta. Dada a sua inteligência, percebia as missões que lhe eram incumbidas e as executava ao pé da letra.

Vivendo com a avó no período de férias escolares, certo dia Nakulu que ia manhã cedo á lavra, ordenou:

- Oh neto!

- Avó! - Respondeu ele, sempre pronto.

- Estou a deixar a mocroeira[1] na tarimba. Se por acaso chover, luta com a chuva! – Retirou-se a velha cambaleante, descendo o monte que separa a aldeia da lavra.

- Ordem dada, ordem acatada, avó. - Respondeu Jacinto.

A velha Nakulu e as amigas foram cantarolando a caminho da naka enquanto Jacinto se preparava para a peleja. O céu estava carregado de nuvens. Umas eram brancas, outras cinzentas e outras ainda escuras parecendo fumo preto. Fazia remoinho no céu. Longe, não muito longe, ouviam-se estrondos que recordavam a guerra do passado. Os trovões que anunciavam a chegada da água pareciam explosões de obuses.
Jacinto começou então a juntar paus e pedras. Teria uma luta renhida com a chuva.

Mal caiu a primeira gota, Jacinto começou a jogar os paus e as pedras que tinha junto de si contra a chuva que gotejava cada vez com maior intensidade.

A última pedra lançada correspondeu à última gota.

- Balas terminadas inimigo vencido! – Disse Jacinto para si mesmo.

Não tardou a chegada da velha Nakulu que ao ver o neto todo exausto perguntou:

- Porquê deste aspecto sujo e sofrido?
- Avó! Lutei com a chuva conforme recomendou ao ir para a lavra.
- E a macroiera?
- Calculo que esteja no lugar. Nem houve tempo para a ver, pois a luta não foi fácil.

Dito isso, a velha meteu-se aos prantos e a reclamar da tristeza que era o seu neto.

O assunto foi motivo de comentários durante semana e meia na aldeia e teve de ser julgado pelo soba dadas as represálias que a velha infringia ao neto por ter deixado a chuva arrastar a sua macroeira.

Lei Para Todos, o soba de Muxaluando[2], convocou todo o povo da aldeia. Chamou os que tinham formação académica e aqueles que não tinham estudado. Buscou estórias do passado em que ordens mal dadas foram também mal acatadas e resultaram em prejuízos para a população. Depois da análise do caso, os notáveis[3] da aldeia deram razão ao menino Jacinto, pois a ordem para a recolha do bombó à chegada da chuva fora mal dada.

 

 



[1] Pedaços de mandioca humedecida e triturada para secagem.
[2] Município da província angolana do Bengo.
[3] Os chefes da aldeia; os responsáveis.

sábado, 1 de setembro de 2012

MANONGONONGO DA MAURA

(Este texto é parte do livro "O Colecionador de Pirilampos")

É sexta-feira. As mulheres camponesas voltam cedo das lavras e as que trabalham na cidade também chegam uma hora mais cedo do que o habitual. Os homens, barulhentos como são à sexta-feira, estão todos reunidos. Uns nos jangos[1] comunitários que abundam na região e outros nos seus quintais, metendo conversa em dia.

A cantina do Dialó, um senegalês que aqui aportou em busca de negócios, regista um entra e sai sem precedentes. O estrangeiro, alheio à cultura deste povo, apenas bate palmas de contente devido à enchente que regista o seu estabelecimento, ignorando o que estará por atrás de tamanha procura de sumos, gasosas[2] e frangos congelados.

Mais movimentada ainda está a loja do Satxambe onde o tilintar das garrafas que saem carregadas faz adivinhar a ocorrência de uma festa em local não muito distante.

Maria, a filha do Sô Joaquim, da mota de três rodas, deu à luz uma menina. Pariu com apenas sete meses de gestação mas a bebé está saudável e dispensou a incubadora. É por isso que todos da família estão contentes e em festa.

Na rua da trás, a dona Isabel, parteira, mulher do Zé Toy que é kamanguista[3] de muita fama e dinheiro, também deu à luz gémeos. Um rapaz, gordinho como leitão, e uma menina com corpo de miss. Até já foi apelidada de miss Maura.

Zé Toy que se tornou pai pela primeira vez não consegue conter a alegria e quase fechou a rua para dar uma festa aberta a todos os vizinhos e outros transeuntes. A polícia teve mesmo de intervir para amainar os ânimos e acautelar excessos. Uma notificação foi-lhe passada para pagar a transgressão administrativa no comissariado, mas o Kamanguista, apesar de ter acatado, não está preocupado com a multa e a sua festa continua no quintal e no passeio da rua. É que todos os colegas e amigos dele e da mulher apareceram com os seus carros e caixas térmicas repletas de bebidas diversas, carne e peixe já temperados e outras iguarias. A festa tornou-se mesmo popular e as mulheres do bairro vão chegando para saudar os novos na phasa[4] e sa phasa da rua Verde[5].

Na rua Amarela, onde vive Maria e o seu pai Sô Joaquim, como lhe chamam os mais novos do bairro, também há festa rija. Kasovita[6] é motivo de alegria que contagia a vizinhança e vão chegando de hora em hora brindes para a kivadi[7]. Maria e o seu marido Kexijina, apesar de muito novos, já vão no quarto manongonongo[8] que acaba sempre por juntar as duas famílias e todos os amigos comuns.

Na Lunda é assim. A festa espontânea do recém-nascido só termina quando secar a última gota de álcool, quando soar o último ngoma[9] e quando cantar o último galo. É até se fartar a madrugada!

- Xé mano, paga manongonongo, não fica só kamwelo[10]! – Dizem as mulheres à passagem de um transeunte bem vestido.

E a festa que adivinhava o seu epílogo retoma com as moedas doadas pelo forasteiro que deixa as últimas reservas da sua algibeira para se juntar à festa tradicional. É manongonongo!





















[1] - Alpendre onde se reúnem os notáveis da aldeia para discutir e resolver os problemas da comunidade (termo Bantu).
[2] - Refrigerantes.
[3] - Traficante ou explorador artesanal de diamantes (termo Cokwe)
[4] - Mãe de gémeos (termo Cokwe)
[5] - Pai de gémeos (termo Cokwe)
[6] - Menina que nasce depois de rapazes seguidos (termo Umbundu)
[7] - Parturiente (termo Kimbundu).
[8] -Festa espontânea que se dá ao nascer de um bebé (termo Cokwe).
[9] -Batuque; tambor.
[10] - Pouco dado à partilha, soberbo (do kimbundu).

quarta-feira, 1 de agosto de 2012

A COBRA DO HOSPITAL

Este texto é parte do livro "O Coleccionador de Pirilampos"
Naquela sexta-feira de Maio de 1790 a aldeia de Wanga Kalunga tinha despertado com um grande alvoroço. O sino das más notícias tinha tocado à madrugada, sinónimo de alguma praga à volta ou despedida de um dos notáveis da aldeia ou do reino de Tata Ngunji.
E, como as más notícias correm o mundo, até os reinos vizinhos do Além-Monte estavam de olhos em Tata Ngunji e, particularmente, no seu Estado Livre de Wanga Kalunga que tem os aldeões estacionados à volta da grande mulemba[1] das reuniões.

O sol, ainda sem força, marcava envergonhado os primeiros passos. Apressados para o Jango das boas e más notícias estavam todos os aldeões: mulheres grávidas e outras por engravidar, homens válidos e inválidos (também chamados de homens sem sombra), crianças sãs e doentias, velhos trôpegos e moribundos, todos. Nus e vestidos às pressas. Ninguém queria que “o céu lhe desabasse a casa” ou ouvir de bocas terceiras as más novas que tinham acontecido ou que estavam por acontecer. Tamanha era a preocupação motivada por aquele madrugador sino dos maus agoiros.
- Nessa aldeia, onde quem conta um conto lhe acrescente dois pontos e quem reconta lhe acrescente cinco, não é bom ficar em casa e esperar que te contem. – Disse Ngan´Oxiki, noventa anos às costas.

O idoso, que com coragem e últimas forças puxou do casaco e bengala, era o conselheiro geral da aldeia e do Soba Xisa Wanga e gozava, por isso, do benefício de receber em sua libata[2], para consulta ou prestação de informação sobre as últimas ocorrências na aldeia, no reino e até mesmo nos Estados vizinhos. Mas Ngan´Oxiki  foi também.

Para os demais aldeões de Wanga Kalunga a ausência em reuniões colectivas era punida com admoestações simples, trabalhos sociais na aldeia e ou na lavra comunitária.
Mais o sol caminhava para o centro, mas subia a apreensão do povo. Pior ainda porque apesar de todos estarem no local das reuniões não se fazia presente o soba Xisa Wanga.

- Mas, porquê que o ngana soba ainda não está aqui? - Questionavam-se os mais críticos da aldeia, numa altura em que a impaciência dos mais idosos acelerava as cachimbadas e o avolumar do fumo que pulverizava o ambiente.

Lá dentro, na Zemba[3] do Soba, Kabezo e Kixindo, mulher e filho do soberano, tudo faziam para reanimar o soba que estava moribundo e poderem apresentá-lo aos seus súbditos, como era de costume secular. O soba não pode viajar, nem que seja para a morte, sem despedir-se do seu povo e a excepção à regra não era de admitir.
Xisa Wanga, com uma temperatura de assar kabwenha[4], tremia de fio que nem galinha no frigorífico. Na tarde anterior, quando revistava as suas armadilhas à volta da lavra, sentiu um ligeiro pico no calcanhar direito. Corajoso como é, o soba não deu muita importância. Tomou o seu banho vespertino e segui para casa sem sequer olhar para o local afectado. Julgou que se tratasse de um pico qualquer, daqueles normais que se sentem quando se anda mal calçado pela mata. Porém, o frio que lhe congela o sangue e lhe assa a carne ainda viva, faz da família desconfiar de outra coisa. Uma mordedura perigosa, um envenenamento, se calhar…

- Meu povo! Por favor arranjem transporte porque o velho está mal. - Irrompeu da libata o jovem Kixindo, num tom trémulo e dirigindo-se ao grosso da população que aguardava ansiosa pelo soba e pelas más notícias.

- Chamem o Kimbanda, chamem o Enfermeiro e chamem também o catequista. Cada um vai fazer o que sabe e o que pode. – Emendou o ancião Ngan´Oxiki, sábio como ninguém naquelas paragens.
De imediato, o comerciante compareceu com a carrinha. O kimbanda com as suas mahambas[5] e raízes medicinais; o enfermeiro com os seus utensílios: medidor de pressão arterial, estetoscópio, mala de primeiros socorros, entre outras ferramentas; o catequista com a sua bíblia, kamba-dya-mwenho[6], terço e miniatura de santos. Cada um apelava à eficiência da sua ciência, dos seus santos e arcanjos para poder salvar o soba que gozava de grande aceitação do povo, devido à sua abertura ao diálogo e negociação e solução comparticipada dos problemas do povo.

- Avó Grande, assim era tratado o velho Ngan´Oxiqui, já temos a carrinha do Sô Marques com um colchão de espuma e um lençol novo. – Disse Pascoal Kaquarta, um jovem estimado pelo seu dinamismo e perfeccionismo.
- Vamos levar o papá soba ao hospital da Vila de Tala Boxi. É perto. São apenas vinte quilómetros. - Disse o motorista Sabalo Kaphonde que, sem mais demora, partiu a caminho da Vila, transpondo a serra que servia de cortina visual com outros povos do Além-Montes.

Durante a viagem, a carrinha ocupada pelo doente, enfermeiro, kimbanda[7] e o catequista era um mundo à parte. Um mundo novo que permitiu coabitar, pela primeira vez, três ritos antes incompatíveis. O kimbanda, Kidady Wenji, com os seus amuletos evocava a memória dos antepassados para que dessem mais tempo de vida ao Soba. Mukwa-Kusanza, o enfermeiro, buscava os sinais vitais do seu paciente e fazia pensos húmidos para poder fazê-lo chegar ainda com vida ao Médico que já os aguardava no hospital de Tala Boxi. O catequista, Ngunga Ngele, evocava nomes de todos santos conhecidos e outros desconhecidos para que protelassem a chamada do soba… assim foi durante os vinte quilómetros. E todos fizeram-no com dedicação e sabedoria o que permitiu que, embora moribundo, sem fala e nem tacto, Xisa Wanga mantivesse a visão e enxergasse tão bem que ao ser descarregado da carrinha, como caixa de ovos cujos donos pretendem que não se quebre sequer um, o soba Xisa Wanga deparou-se com o símbolo do hospital que era uma cobra enrolada num pau e deitando veneno num copo.

- Tatê! Outra cobra? - Exclamou, metendo-se a correr num passo e velocidade quem nem mesmo o vento dum fechado cacimbo lhe pôde parar.
Xisa wanga pôde sentir-se curado sem que uma injecção ou comprimido lhe tivesse sido ministrado pelo médico.




[1] Árvore frondosa; borracheira.
[2] Casebre.
[3] Palácio do soba.
[4] Peixe miúdo. Muito apreciado nas aldeias do interior de Angola.
[5] Amuletos.
[6] Livro de hinos e rituais de missa da igreja Católica.
[7] Curandeiro; pessoa que exercita a medicina tradicional; adivinho.